Punição imposta pelos jihadistas remete às barbáries cometidas nos primórdios das civilizações e funcionam como eficazes propagandas do poder do autoproclamado califado
"Ficarão crucificados o dia todo e serão castigados com
70 chicotadas por romper o jejum do Ramadã", diz a mensagem estampada nos
cartazes que a polícia do grupo terrorista Estado Islâmico (EI) pendurou nos
pescoços de dezessete pessoas que foram crucificadas na Síria. A selvageria foi
acompanhada por uma multidão que, não satisfeita com a humilhação das vítimas,
zombou dos crucificados e atirou pedras contra eles. É difícil crer que
execuções dessa natureza foram perpetradas há poucos dias, e não nos primórdios
da civilização.
A crucificação carrega uma simbologia especial no Ocidente
por remeter às passagens bíblicas que narram a morte de Jesus Cristo. Mas a punição
já era usada em larga escala muito antes do veredicto acatado por Pôncio
Pilatos. Historiadores acreditam que os romanos aprenderam a crucificar os
prisioneiros em Cartagena, dominada em 149 a.C. A condenação era aplicada
principalmente contra pessoas desprovidas de direitos, como os escravos e
agitadores políticos e religiosos que ameaçavam a autoridade do Império Romano.
Foram crucificados, por exemplo, aproximadamente 6.000 rebeldes que lutaram na
rebelião iniciada pelo gladiador Espártaco. A prática também era comum no
Império Persa, onde o rei Dario I crucificou cerca de 3.000 oponentes na
Babilônia.
Na Roma antiga, o condenado tinha os braços presos a um
pedaço de madeira horizontal e era flagelado e ridicularizado por multidões até
chegar ao ponto de execução. No local, uma estaca fincada na terra continha as
inscrições com o nome e o crime cometido pelo prisioneiro. Mãos e pés eram
pregados na madeira e depois de crucificado, o condenado tinha as roupas
rasgadas para ampliar a humilhação. O suplício durava, em média, doze horas. A
causa da morte geralmente era exaustão ou parada cardíaca. Em alguns casos, as
autoridades concordavam em quebrar as pernas do crucificado para acelerar a
morte. O corpo, então, ficava exposto até que virasse comida para pássaros e
outros animais.
A brutalidade era tamanha que os próprios romanos evitavam
deixar registros do uso da crucificação. "Isso é importante porque, embora
a crucificação fosse uma prática comum, os escritores não a discutiam em
detalhes e não vemos sua representação na arte romana", diz Felicity
Harley-McGowan, especialista no cristianismo antigo e em arte medieval pela
Universidade de Yale. "A elite intelectual romana considerava a
crucificação uma prática associada aos bárbaros, não a uma sociedade
civilizada", afirma.
Os primeiros retratos da punição na antiguidade remetem
justamente à morte de Jesus Cristo e visam à imortalização do episódio. O
imperador romano Constantino, o primeiro a se converter ao cristianismo, aboliu
a crucificação por volta do século 4 d.C. em respeito à religião. Por mais que
a proibição tenha sido respeitada nos anos que se seguiram, a crucificação
ressurgiu na Idade Média como uma forma de reforçar o controle das autoridades
sobre o comportamento da população.
Barbárie - Séculos de história e evolução da humanidade
separam o Império Romano do califado de terror autoproclamado pelo EI na Síria
e no Iraque. Mas não são muito diferentes os motivos que levaram ambos a adotar
uma forma tão brutal de execução e humilhação. "Sabemos por várias fontes
que a crucificação era empregada pelos romanos com objetivo de dissuasão. As
pessoas eram crucificadas em espaços públicos, geralmente nos portões das
cidades ou na beira de estradas, para maximizar a visibilidade da execução. A
prática era uma espécie de espetáculo visual", afirma Felicity.
À rede CNN, o professor assistente de estudos islâmicos da
Universidade Estadual da Geórgia, Abbas Barzegar, disse que esses atos
violentos são "parte de uma campanha fundamentalista de retomada de
símbolos antigos". "As punições desse tipo raramente foram vistas no
mundo muçulmano nos séculos recentes", ressaltou Barzegar. Os jihadistas
do EI vêm sistematicamente usando as crucificações - visualmente chocantes,
fisicamente crueis e moralmente humilhantes - como forma de propaganda para
aterrorizar as populações locais e também o Ocidente, pois sabem que as imagens
dos corpos crucificados correm o mundo. "O EI precisa anexar um
significado às suas mortes. Cometer meros assassinatos em um estado constante
de guerra carece de valor. Eles precisam promover uma mensagem de propaganda
por trás do que estão fazendo", conclui Barzegar.
Trajetória do EI após proclamação do califado
O começo - a queda das cidades de Raqqa e Mosul
Apesar de combater desde 2013 no Oriente Médio, o Estado
Islâmico (EI) ficou mundialmente conhecido ao assumir o controle completo de
Mosul, ao norte do Iraque, e Raqqa, ao norte da Síria. Raqqa é vista como a
capital do autoproclamado califado islâmico.
Especialistas divergem com relação
a data exata em que os terroristas invadiram a cidade, uma vez que o controle
geral do município só foi assegurado após combates entre o EI e outras facções
extremistas que lutam na guerra civil síria. A última derrota da ditadura de
Bashar Assad na região ocorreu em agosto de 2014, quando os jihadistas
superaram o último foco de resistência do Exército na província de Raqqa e
assumiram o controle da base aérea de Tabqa, localizada a 40 quilômetros do
principal reduto dos radicais.
Mosul, a segunda maior cidade do Iraque, caiu por completo
nas mãos dos terroristas em 10 de junho de 2014. As Forças Armadas do país
foram tomadas de surpresa com o avanço repentino dos jihadistas e abandonaram
seus postos após os extremistas terem controlado o aeroporto local, prédios
públicos e da imprensa e prisões. Centenas de milhares de pessoas foram
obrigadas a abandonar suas casas após a investida do EI contra a cidade.
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