02 agosto 2014

A MUSICA NO CONTEXTO CRISTÃO CONSUMISTA


Que me desculpem
os músicos das paradas
de sucesso superficiais
e consumistas da fé,
mas imaginação poética,
integridade teológica,
espiritualidade integral
e arte integrada
à missão da igreja
são fundamentais!



Se dependesse daqueles que, como eu, buscam criatividade poética, sobriedade, serenidade, calma, profundidade, relevância e desejos contidos na letra, melodia, teologia e interpretação de uma canção, poucas músicas evangélicas ganhariam um Grammy cristão. Me cansei há muito desse "retão" (digamos assim por falta temporária de outra expressão) atordoante, cansativo, raso, repetitivo, gerador de ansiedade, desorientador, esmagador, alienado do contexto, e quase desprovido de imaginação poética e de conteúdo pedagógico para a vida.

A chamada "música gospel" brasileira, com raras exceções dentre os artistas que dela fazem parte, tem se dado ao tipo de teologia que gera exaustão espiritual e amnésia missionária. Grande parte das músicas utilizadas no louvor e adoração das igrejas evangélicas demonstra que a igreja pode estar perdendo -- se já não perdeu! -- seus rumos teológicos e missionários. Além disso, em muitíssimos casos, tais músicas e a aplicação que se dá à elas no contexto do louvor e adoração drenam a alma da gente, ao invés de nutri-la, de inspirá-la, de encharca-la com entendimento sobre o que significa relacionar-se com um Deus que se revela muito mais e com mais frequência através dos ventos cicios e tranquilos, do que pelas ventanias das expectativas cenógrafas, coreógrafas e alopradas do cristianismo consumista.
O mercado consumidor da fé precisa que a música seja "ungida", i.e., que venha repleta de poderoso tesão-espiritual, do tipo que seja bom o bastante para gerar uma espécie de prazer espiritual-orgástico. É muito comum que tal estado de êxtase espiritual resulte em relaxamento missionário, em pouca ou nenhuma seriedade num serviço cristão que se extenda ao mundo que sofre dores atrozes, injustiças sociais, fome, sede, exclusão e desesperança. Frequentemente, esta experiência de êxtase se traduz em espiritualização de tudo e, é claro, em alienação da realidade que cerca a igreja e os que dela fazemos parte.

Não ignoro o fato de que as pessoas hoje, como em outros tempos e contextos passados, experimentam a Graça divina de formas diferentes. A própria Graça é multifacetada e não encontra limites nem no caminho, nem no alcance, nem na forma, e nem no estilo. O que me preocupa e desconforta, contudo, é a intencionalidade com que a teologia prática resultante das canções populares evangélicas se tornaram pretenciosas, exigentes e mandonas (p.ex., “O Senhor me prometeu, agora eu quero o que é meu!”, "Eu reivindico aquilo que é meu!", "Quero que o Senhor me restitua o que me pertence!", etc.). Vários cânticos parecem sugerir que a gente agora subiu num tijolinho e, por causa de tal "conquista", passou a achar que tem o direito de ser prepotente para com o Eterno!
Confio plenamente na autonomia do Espírito para tornar vivo e frutífero até mesmo o que é seco e desprovido de teologia bíblico-histórica e relevante. Afinal, Deus é Deus, é livre e faz o que quer, como quer, onde quer, com quem quiser e, a rigor, faz tudo reverter para a Sua glória. Vejo, contudo, que este mesmo Deus também disse “Estou farto!” — como é confortante saber que até Deus encontra razões pra ficar “farto” de certas coisas relacionadas à adoração! —, dentre elas a questão das mãos que se levantam manchadas de sangue (leia-se Isaías 1:10-17!). A meu ver, esta analogia está quase sempre relacionada à indiferença, à omissão, à injustiça, à opressão, à falta de misericórdia para com o próximo, a ausência de disposição em perdoar dívidas, etc.
Quando a gente acessa uma canção de adoração, deveríamos não somente examinar nossas próprias mãos e motivos da alma, mas também observar que a história do movimento cristão se fez acompanhar de música cheia de conteúdo teológico degustante, saboroso e tragável. A teologia prática da música no culto não se dava ao puro entretenimento pessoal. Isto é, entrar no espírito da adoração e louvor nada tem a ver com embarcar num vagão de montanha russa do puro consumo de espiritualidade frenética que se volta apenas para o meu próprio prazer.
Entoar um hino ou um cântico não é uma questão de adentrar numa experiência de “disneylândia espiritual”, no qual eu escolho os brinquedos teológicos que mais me atraem pra depois dizer apenas, “Esse foi bom, emocionante, arrebatador, de tirar o fôlego!” Na espiritualidade, cantar para Deus e o sobre Seu Reino é mais holístico do que se tem concebido! Por vezes isso pode implicar conscientização, justiça, missão integral no mundo, e, mais que tudo, voz profética (reluto em usar a expressão “voz profética”, em razão das caricaturas que este termo ganhou em alguns contextos da prática da fé). Há algum tempo fiz uma poesia com um título simples e pouco criativo — “Cantar e Cantar” —, na qual digo o seguinte:

Cantar a alegria, 
Cantar a tristeza. 
Cantar o prazer ou o desgosto, 
Mesmo que lágrimas teimosas rolem no rosto.
Cantar por justiça, 
Cantar por mudanças. 
Cantar por amor ou por protesto, 
Embora possa vir a ser sobre aquilo que detesto.
Cantar contra a pobreza, 
Cantar contra a maldade. 
Cantar contra o abuso e a opressão, 
Porque cantar assim é também estender a mão.
Cantar além do refrão, 
Cantar além da melodia. 
Cantar além das palavras e dos gestos, 
Para ver e saber que a vida não é feita de restos.
Cantar para o Eu Sou
Cantar sobre o Alfa e Ômega
Cantar pelo Paráclito todo o alfabeto, 
Até que o meu canto se torne bem mais concreto.

As músicas que fizeram parte do repertório da minha formação e caminhada cristã ao longo dos anos, lançam e desafiam o todo do que sou à experiência da simplicidade, i.e., de uma espiritualidade não-soberba, não-fechada, não-exigente e não-consumista, mas desejosa de amar e servir mais e mais a Deus e ao seu Reino. Músicas de Asaph Borba, Wolô, Sérgio Pimenta, João Alexandre, Jorge Camargo, Guilherme Kerr, Jorge Rehder, Nelson Bomilcar, Carlinhos Veiga, Carlinhos Félix, Josué Rodrigues, Adhemar de Campos, Stênio Marcius, Glauber Plaça e do desconhecido Moair "Môa" Marques, pra citar apenas alguns compositores, desenharam minha caminhada cristã dos últimos 35 anos com riqueza, beleza e significado.

Dentre as mais recentes está Intimidade, com letra de Rubem Amorese, música de Toninho Zemuner, com a excelente interpretação de Kelen Franco Deggau. Intimidade gera na gente o tipo de espiritualidade desprovida de petulância pessoal, causa o desejo de uma entrega total e absoluta, constrói o caminho da simplicidade e profundeza na relação com o Pai. Sim, sem dúvida alguma há aqui uma escolha por estilo, mas não se trata somente disso. Trata-se, antes e acima de tudo, de escolha pelo espírito da música que, como outras, diz mais do que o que está na superfície deste vasto, inesgotável e inexplorável oceano de comunhão com o Eterno.
No meio da atual selva musical evangélica de "poesia rala", como diz Jorge Camargo, observo exceções comoa música que citei acima e os compositores aos quais me referi. Nos últimos anos, tenho visto profetas sóbrios que também falam e cantam contra a igreja e seus delírios mercantilistas. E eles se levantam dos lugares mais inesperados e não-paradigmáticos que se possa imaginar. São pessoas simples, de coração apaixonado por Jesus, de mente criativa e cristalina, de raciocínio fino e elevado, e de lábios poético-proféticos afiados.


É gente que não abarrotou seus bolsos usando o dom divino e precioso da poesia e do canto. Profetas são assim mesmo. Jamais ficarão ricos, justamente porque são profetas. Eles não vendem a alma ao mercado religioso, nem se rendem à sedução dos ventos da prosperidade mórbida que nada tem a ver com a simplicidade do Jesus de Nazaré. Por esta razão, se vêem e se entendem na subversividade. "É uma tarefa subversiva", diz Jorge Camargo.

A meu ver, por exemplo, há artistas daquela que se pode chamar de "velha-guarda" protestante que hoje, pela simples observação da confusa e babélica "igreja brasileira" (sic), e de experiências com a impressionante fenomenologia desta, se tornaram nada menos que poetas-profetas. Sim, são 
profetas-poetas daqueles que quase já não mais víamos no mosaico brasileiro. Profetas para os quais eu tiro o meu chapéu.


São poucos ainda, mas voltaram com força pra dar um tom corretivo à toda esta avacalhação perpetrada por setores da "igreja brasileira" (sic). Refiro-me ao tipo de cristandade que, em sua teologia e prática, nega a fé, adultera o evangelho do Reino, mercadeja e exclui suas essências, e solapa o cristianismo puro e simples. 

Dentre estes novos-velhos poetas-profetas ressurgentes estão João Alexandre (com sua música É proibido pensar, dentre outras mais antigas), Jorge Camargo (com Letra morta) e alguns outros poucos e raros. Afinal, profetizar contra os descaminhos da Igreja é preciso, e tem seu preço! "O grande dilema vai ser a gente viver na contra-mão", diz Jorge Camargo. Entretanto, apesar das dores das rejeições advindas da experiência de andar na "contra mão" do mercado evangélico, como sole acontecer aos poetas-profetas, eles estão ajudando a "reformar a nação, particularmente a Igreja, e espalhar a santidade bíblica sobre a terra" 

Jhon Wesley

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