O Inferno
Se a Terra for escolhida em vez do Céu, acabará tendo sido, todo o tempo, apenas uma região no Inferno; mas, se ela estiver subordinada ao Céu, terá sido desde o inicio uma parte do próprio Céu. [C. S. Lewis em O Grande Abismo (1)]
No final das contas, existem apenas dois tipos de pessoas: as que dizem a Deus: “Seja feita a Tua vontade”; e aquelas a quem Deus diz: “Seja feita a sua vontade”. Todos os que estão no Inferno escolhem a segunda opção. Sem essa escolha pessoal não haveria Inferno. Alma alguma que deseje sincera e constantemente a alegria irá perdê-la. [C. S. Lewis em O Grande Abismo (2)]
É fato. Jesus falou mais do inferno do que do céu. Inúmeros cristãos contestam o inferno, mas não é porque faltam referências bíblicas. Se o problema fosse número de referências o céu poderia ser mais contestado. Jesus falou em “fogo eterno” que foi preparado para o “diabo e os seus anjos” [Mt 25.41; cf. Mt 3.12; Mc 9.43]. Outro aspecto importante é que Jesus descreve o inferno como eterno, assim como eterno é o ceú [Mt 25.41 e 46]. Portanto, é estranho como um cristão pode defender o aniquilacionismo, ou seja, a ideia que os não-salvos simplesmente deixarão de existir. É claro que a “alma imortal” não é uma doutrina bíblica (e sim da filosofia grega) [3], mas isso não deixa de indicar que o “castigo eterno” seja uma realidade. Tanto o salvo como o não-salvo não deixarão de existir.
O aniquilacionismo não é somente antibíblico como ilógico. Como algo pode simplesmente deixar de existir? O escritor C. S. Lewis, tratando sobre o simbolismo do fogo, escreveu:
A destruição, devemos supor naturalmente, significa a desconstrução- ou cessação- do destruído. E as pessoas não raro falam como se a “aniquilação” de uma alma fosse intrinsecamente possível. Em toda a nossa experiência, contudo, a destruição de uma coisa significa o afloramento de outra. Queime a lenha, e você terá fumaça, calor e cinzas. Ter sidolenha agora significa ser essas três coisas. Se as almas podem ser destruídas, não deve haver uma estado equivalente a ter sido uma alma humana? E não seria esse, talvez, o estado igualmente bem descrito como tormento, destruição e privação? [4]
E o teólogo J. I. Packer, em um ótimo artigo que combate o aniquilacionismo, escreveu:
Em nenhuma parte a morte significa extinção; morte física é a partida para outra forma de existência chamada sheol ou hades, e morte metafórica é uma existência sem Deus e Sua graça; nada na terminologia bíblica garante a ideia [...] de que “a segunda morte” de Apocalipse 21:11, 20:14, 21:8 significa ou refere-se à extinção da existência. [5]
Dante e Virgílio lendo a placa do portal do Inferno. Ilustração do artista inglês William Blake (século XVIII) |
As imagens de “fogo”, “trevas”, “enxofre” e “verme” no inferno são metáforas? A maioria dos comentaristas bíblicos dizem que sim. A simbologia dessas imagens demonstra a natureza do inferno. Que fique claro: saber que as imagens do inferno são metafóras não serve de consolo para ninguém. A metáfora é usada justamente para tentar descrever a realidade que vai além da compreensão humana. Por que não devemos ler tais imagens literalmente? Isso porque a palavra grega geenna, que é mencionada 12 vezes por Jesus Cristo para descrever o inferno, traz a imagem do Vale de Tofete, onde crianças eram queimadas em sacrifícios ritualísticos ao deus Moloque. Como o tempo o vale se tornou um grande lixão. Ali, o fogo era constante no consumo do lixo e os vermes estavam sempre presentes. Jesus usa essa imagem para simbolizar o inferno e não para descrevê-lo literalmente. Essas imagens são simbólicas, mas o inferno em si não é uma fantasia.
O inferno é o lugar de separação completa de Deus. O apóstolo Paulo expressa bem essa ideia em 2 Ts 1.8-9: “Ele punirá os que não conhecem a Deus e os que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus. Eles sofrerão a pena de destruição eterna, a separação da presença do Senhor e da majestade do seu poder” (NVI, grifo meu). Observe bem a expressão: a “separação da presença do Senhor” e a separação da “majestade do seu poder”. Isso é o pior do inferno! Nós, mesmo quando vivíamos entregues ao mundo, não experimentamos a completa e definitiva “separação de Deus”. Logo, por não estarmos definitivamente separados do Senhor, o Espírito Santo transformou o nosso coração. Podemos chamar o inferno da mais absoluta apostasia, ou seja, a separação sem volta. É a morte da esperança.
O homem estar separado de Deus significa estar num lugar de tormento. “Choro e ranger de dentes”- nossa imaginação não está adequada para esta realidade, esta existência sem Deus. O ateu não está consciente do que é a não-existência de Deus. A não-existência de Deus é a existência no inferno. O que mais além disto é oferecido como resultado do pecado? O homem não se separou de Deus por seu próprio ato? “Desceu ao inferno” é simplesmente a confirmação disto. O julgamento de Deus é justo- isto é, ele oferece ao homem o que ele quer. [6]
No clássico livro A Divina Comédia o poeta italiano Dante Alighieri conta a história fictícia e alegórica sobre uma viagem do inferno ao céu com o seu companheiro Virgílio. Na ficção, quando Dante passava no inferno, ele observou a seguinte mensagem em uma das portas do lugar sombrio:
Por mim se vai para a cidade ardente,
Por mim se vai à sua eterna dor,por mim se vai entre a perdida gente.
Justiça deu impulso ao meu Autor:cumpriram-se poderes divinais,a suma sapiência, o primo amor.
Antes e mim não se criou jamaiso que não fosse eterno; - e eterna, eu duro.Deixai toda esperança, vós que entrais. [7]
Vejam com a mensagem é forte: “Deixai toda esperança, vós que entrais”! O inferno, como a completa ausência de Deus, é um lugar sem a “graça comum”. É o lugar do ego inflamado, do amor-próprio, da autoidolatria... E o irlandês C. S. Lewis expressou de maneira magnífica essa realidade no livro O Grande Abismo. Lewis mostra personagens impressionantes que preferem viver o inferno com seus vícios a encarar a renúncia para a felicidade eterna na “grande montanha”. O inferno, como disse Lewis, é o lugar onde os “homens usufruem sempre a terrível liberdade que exigiram” na vida [8].
Deus não manda ninguém para o inferno. O inferno é fruto da nossa escolha em vida. Ora, se escolhemos o modo de vida do inferno para onde iremos? O teólogo Timothy Keller escreveu:
O inferno é a escolha voluntária de uma identidade apartada de Deus para uma trajetória rumo à infinidade. Vemos esse processo “em pequena escola” nos viciados em drogas, álcool, jogo e pornografia. Primeiro há uma desintegração, pois, conforme o tempo passa, o indivíduo precisa cada vez mais daquilo em que se viciou para conseguir a mesma sensação, o que conduz a uma satisfação cada vez menor. Depois, vem o isolamento, conforme o viciado mais e mais culpa os outros e as circunstâncias a fim de justificar o próprio comportamento. “Ninguém entende! Estão todos contra mim!”, é uma queixa resmungada com uma dosa cada vez maior de autopiedade e autocrentrismo. Quando construímos nossas vidas com base em outra coisa que não Deus, essa coisa- embora boa- se transforma em um vício que escraviza. A desintegração pessoal ocorre em uma escala mais ampla. Na eternidade, tal desintegração prossegue indefinidamente. Crescem o isolamento, a negação, a ilusão e auto-obsessão. Quando se perde por completo a humildade, perde-se o contrato com a realidade. Ninguém jamais pede para sair do inferno. A mera ideia de céu lhes soa como tapeação. [9]
Portanto, outro absurdo antibíblico é a ideia do universalismo, ou seja, a doutrina que ensina que todos serão salvos no final. Como Deus pode salvar quem não quer ser salvo? Isso só seria possível com a violação do livre-arbítrio. O universalismo é determinista [10] e, é claro, não encontra nenhum apoio nas Sagradas Escrituras. Que tipo de amor é esse? Onde pode existir amor sem liberdade e, inclusive, liberdade para a rejeição e abandono? O pai do filho pródigo impediu a loucura do filho? A reposta é negativa, mas não porque não o rejeitasse, mas simplesmente por amá-lo. O universalismo é o tipo de ideia bonita de longe, mas com uma essência podre quando olhamos de perto.
Agora, vamos falar do inferno sem cuspir “fogo e enxofre”. A realidade do inferno é tão terrível que deveria ser impossível um cristão falar sobre essa doutrina sem temor, tremor e comoção. Muitos cristãos parecem tratar assuntos como “inferno”, “juízo” e “ira divina” com certo prazer mórbido. Não é cuspido fogo, mas sim com clamores de misericórdia. Ora, o descrente de hoje pode ser o crente de amanhã, assim como crente de hoje pode ser o apóstata de amanhã. E pregar o inferno sem o remédio (a salvação em Cristo) é uma pregação dúbia. Ninguém deve ser “converter” pelo medo, pois isso é falsa conversão. Falar do inferno e esquecer a graça de Cristo é simplesmente fabricar moralistas que viverão eternamente no... inferno. Tim Keller observou:
A doutrina do inferno é fundamental. Sem essa doutrina não podemos entender a nossa completa dependência de Deus e nem o risco de abraçarmos, até mesmo, os menores dos pecados. Além disso, também não entenderíamos o verdadeiro alcance do amor de Jesus. No entanto, é possível destacar a doutrina do inferno de forma imprudente. Muitos, por medo de compromisso doutrinal, querem colocar toda a ênfase no julgamento ativo de Deus e nenhum sobre o “caráter auto-escolhido” do inferno. [...]. E alguns podem pregar o inferno de tal maneira que as pessoas reformem suas vidas apenas por um medo egoísta das consequências do pecado, assim, evitando o mal não por amor e lealdade a quem abraçou e experimentou o inferno em nosso lugar. A distinção entre esses dois motivos é muito importante. A primeira cria um moralista, o segundo motivo cria o crente nascido de novo. [11]
Portanto, como disse John Stott, antes de aderir ao aniquilacionismo na década de 1980, “devemos, no entanto, sem sombra de dúvida, saber que o inferno é uma realidade tenebrosa e eterna. Não é o dogmatismo que é inconveniente ao falar sobre a realidade do inferno; mas a loquacidade e a frivolidade o são. Como podemos pensar no inferno sem chorar?” [12]. É tempo de pregar todo o conselho de Deus.
Referências Bibliográficas:
[1] LEWIS, C. S. O Grande Abismo. 1 ed. São Paulo: Editora Vida, 2009. p 17.
[2] LEWIS, C. S. Idem. p 88.
[3] A alma em si não é uma substância imortal. A doutrina da “imortalidade da alma”, como defendida na filosofia grega, não é bíblica. A eternidade é um dom [cf. Rm 6.23]. É certo que os ímpios continuarão a existir depois da morte, mas usar o termo “imortal” [que significa “incapaz de morrer”] é simplesmente abusivo. A alma do ímpio é mortal, não porque deixará de existir, mas sim porque nele não há vida, ou seja, não há o pulso da vida de Deus. Como dito acima, a “imortalidade” é um dom para os salvos. O apóstolo Paulo escreveu: “Pois é necessário que aquilo que é corruptível se revista de incorruptibilidade, e aquilo que é mortal, se revista de imortalidade. Quando, porém, o que é corruptível se revestir de incorruptibilidade, e o que é mortal, de imortalidade, então se cumprirá a palavra que está escrita: ‘A morte foi destruída pela vitória’” [1 Coríntios 15.53-54]. Mas atenção: Negar a doutrina da “imortalidade da alma”, pois os gregos a julgavam mais elevada do que o corpo, não significa acreditar no aniquilacionismo. Leia mais em: HANKO, Ronald. A Imortalidade da Alma. Monergismo. Brasília 2012. Acesso em: 01/07/2012. Disponível em: <http://www.monergismo.com/textos/amilenismo/imortalidade-alma_hanko.pdf>
[4] LEWIS, C. S. O Problema do Sofrimento. 1 ed. São Paulo: Editora Vida, 2009. p 141.
[5] PACKER, James I. Reconsiderando o Aniquilacionismo Evangélico: Uma Análise do Pensamento de John Stott sobre a Não-Existência do Inferno. Bom Caminho. Florianópolis: 2012. Acesso em: 01/07/2012. Disponível em: <http://www.bomcaminho.com/jip001.htm>
[6] BARTH, Karl. Esboço de uma Dogmática. 1 ed. São Paulo: Fonte Editorial, 2006. p 167-168.
[7] ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. 1 ed. São Paulo: Editora Abril, 2010. p 70.
[8] LEWIS, C. S. O Problema do Sofrimento. 1 ed. São Paulo: Editora Vida, 2009. p 143.
[9] KELLER, Timothy. A Fé na Era do Ceticismo. 1 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p 65.
[10] C. S. Lewis trata do determinismo universalista em O Grande Abismo no capítulo 13.
[11] KELLER, Timothy. The Importance of Hell. Redeemer Presbyterian Church. Nova York: 2012. Acesso em: 16/06/2012. Disponível em: <http://www.redeemer.com/news_and_events/articles/the_importance_of_hell.html>
[12] STOTT, John. Christian Mission in the Mordern World. 1 ed. London: Falcon: 1975. p 113. em: DUDLEY-SMITH, Timothy (cop.). Cristianismo Equilibrado. 1 ed. São Paulo: Editora Vida, 2006. p 529.
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