Senhores dos Terreiros
Por que as religiões afro-brasileiras, historicamente chefiadas por mulheres, são lideradas, cada vez mais, por pais de santo
Rodrigo Cardoso
O papel de protagonista do candomblé, religião que desembarcou no
Brasil – na baiana Salvador, mais especificamente – nos séculos XVIII e
XIX, sempre coube à mulher. Por ser cultivada em espaços domésticos,
essa crença se tornou um ofício feminino por uma razão, entre outras,
muito simples: como permaneciam em casa enquanto os homens iam buscar
fora dela o sustento da família, elas tinham mais condições de
estabelecer contato com as divindades. Como sacerdotisas, as mulheres
davam as cartas nos terreiros. Esse reinado, porém, tem passado para as
mãos masculinas de forma cada vez mais acelerada. O fenômeno é nacional
e, a continuar nesse ritmo, em alguns anos, eles serão os donos do axé
até na Bahia, Estado que projetou para todo o País a imagem das mães de
santo.
Na capital da Paraíba, por exemplo, um mapeamento dos terreiros
realizado pela organização não governamental Casa de Cultura Ilê
d’Osoguiã revelou que 54% das 111 casas cadastradas na cidade são
dirigidas por pais e não mães de santo.
“Em dez anos, se nada for modificado, só teremos pais de santo em
João Pessoa”, afirma Renato Bonfim, o fundador da ONG. Ele chegou a essa
conclusão ao analisar os dados sobre a faixa etária dos pesquisados, a
pouca iniciação de mulheres na religião e a expectativa de vida do
brasileiro. Em outras capitais do País, como Belo Horizonte, Belém e
Recife, a realidade é semelhante (leia quadro na pág. 68). Em tese de
doutorado defendida no mês passado na Universidade Metodista de São
Paulo (Umesp), Nilza Menezes, historiadora especializada em ciências da
religião, verificou que em Porto Velho, capital de Rondônia, os homens
dirigem mais da metade dos templos – e aqueles de maior importância – de
matriz africana. Em quatro anos de pesquisa, ela levantou que 54 dos
106 terreiros existentes na cidade são liderados por pais de santo.
As mulheres, segundo os estudos da pesquisadora, trabalhavam
arduamente em atividades tipicamente domésticas e femininas como limpar,
cozinhar, lavar, organizar, preparar banhos de ervas, enfim, obrigações
do espaço privado. E, depois de longas horas de tarefas braçais,
ficavam cansadas e perdiam o interesse por atividades públicas, como
jogar búzios e atender pessoas. Esse comportamento, no decorrer do
tempo, as afastou de cargos de liderança e as relegou a papéis
secundários, resultando em uma espécie de anonimato. “Elas vêm perdendo o
espaço público de poder, uma função que as projetavam socialmente”, diz
Nilza, a autora da tese. “As obrigações nas denominações de matriz
africana são trabalhosas, o que representa um complicador para a mulher
moderna que cuida da casa, estuda e trabalha.”
No catolicismo e entre os evangélicos as mulheres são até hoje
subalternas na hierarquia religiosa. A inserção delas em posições de
liderança, porém, é reivindicação antiga de uma parcela dos fiéis e tema
que nunca saiu de pauta. Já entre as religiões de matriz africana, a
conformidade das protagonistas de outrora desponta como um fato
preocupante, na opinião dos especialistas. Há várias explicações. “Os
homens estão mais dedicados do que elas”, afirma Sivanilton Encarnação
da Mata, o Babá Pecê, 48 anos, que há mais de 20 responde pela Casa de
Oxumaré, um dos templos de candomblé mais antigos de Salvador. Este ano,
esse babalorixá só conseguiu iniciar filho de santo do sexo masculino.
“Ter mais homens absorvendo o culto dos orixás explica o fato de crescer
o número de sacerdotes nos terreiros”, opina o sacerdote.
SOBERANOS
Babá Pecê (primeiro à esq.), da Casa de Oxumaré, em Salvador, só iniciou filhos de santo este ano:
"Os homens estão mais dedicados do que elas", diz ele
Babá Pecê é também fruto dessa realidade. Ele ascendeu à liderança da
Casa de Oxumaré, que é tombada pelo Instituto do Patrimônio Artístico e
Cultural da Bahia (Ipac), após três sacerdotisas terem ditado o axé no
local (ler à página 67) desde 1927. Por outro lado, pontua a
historiadora Nilza, as mulheres ainda somam a maior parte dos fiéis das
religiões afro-brasileiras e são elas que conferem às casas a imagem das
“baianas” que remetem às tradições. Mas, mesmo na Bahia, as mulheres
estão em xeque. “Acredito que 70% dos espaços de terreiros baianos sejam
dirigidos por homens”, diz o antropólogo Júlio Braga, da Universidade
Estadual de Feira de Santana (UEFS), que prepara o lançamento do livro
“Candomblé – A Cidade das Mulheres, e dos Homens”.
Mães de santo como Stella de Oxossi e Carmem do Gantois, ambas de
Salvador, ainda são mais representativas e têm maior visibilidade
política do que seus pares do sexo oposto. No entanto, quanto mais
afastado da capital for o terreiro, maior será o número de homens no
topo da hierarquia, segundo Braga. Babalorixá do Ilê Axé Oyá, ele diz
que a mídia e os antropólogos têm sido responsáveis pela maior
visibilidade das mulheres na religião em detrimento dos homens.
“Qualquer coisa que se faça na Bahia sobre candomblé são as mães de
santo as requisitadas”, afirma. Mas a crescente força masculina nos
terreiros é inegável. O candomblecista Bonfim, da Casa de Cultura de
João Pessoa, que é axogun da casa de Mãe Tucá, aponta para o fato de os
homossexuais estarem ocupando, inclusive, o espaço das mulheres nos
rituais das religiões afro-brasileiras. “Eles usam paramentos femininos
próprios para a proteção dos seios, por exemplo, algo que não deveria
ser feito”, diz ele.
CULINÁRIA
Edvaldo Silva vende acarajé como parte do trabalho do terreiro
de candomblé: antigamente, a atividade cabia apenas às mulheres
Babá Pecê, da Casa de Oxumaré, tem encontrado resistência das
mulheres toda vez que procura fazer com que homens dancem em cerimônias
públicas – um ritual que historicamente é próprio delas. “Estou tentando
mudar isso aos poucos”, afirma. Outras transformações, porém, já
aconteceram. “Por exemplo, hoje aqui na Bahia, homens vendem acarajé
como parte do trabalho do terreiro. Antigamente, apenas a mulher fazia
isso”, relata. Criado numa família de baianas do acarajé, Edvaldo da
Silva, 29 anos, assumiu o lugar da mãe e da irmã na venda da iguaria. Há
um ano e meio, é ele quem comercializa a comida típica na porta da Casa
de Oxumaré. “A gente tem de invadir o espaço da culinária, já que elas
estão cada vez mais presentes na política do País”, diverte-se Silva.
Brincadeiras à parte, é preciso evitar que a ascensão masculina relegue a
mulher a postos subalternos nos terreiros, o que pode distanciá-las de
vez do exercício do poder religioso e deixar apenas na lembrança a
imagem de autoridade das mães de santo.
Época,N° Edição: 2243 | 01.Nov.12
Comentário de Wáldson: E enquanto isso, nós evangélicos deixamos a desejar no quesito evangelização. Essas pessoas poderiam estar servindo a Deus.
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