19 novembro 2013

O sagrado e o profano no país da paródia

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Na década de 1960, Paul van Buren e A. T. Robinson notaram que “a religião estava fazendo concessões aos titãs da cultura secular” e, na sua luta para escapar da obsolescência, estava se tornando mais semelhante à sociedade em geral.

O neopentecostalismo surge num momento em que as fronteiras entre sagrado e secular estão cada vez mais diluídas. No esforço eclesiástico de dar sentido ao conteúdo bíblico para as novas gerações, os tradicionais limites que separavam a igreja de um modelo cultural secular foram progressivamente apagados, levando a um processo de nivelamento entre o sagrado e o secular.
As igrejas cristãs contemporâneas reforçam a prática de sacralizar o profano, o que é visto em eventos como o “Carnaval de Jesus”, a “balada gospel” ou a “rave gospel”. O sociólogo da PUC-Campinas, Luiz Roberto Benedetti, entende que essa postura das igrejas revela que “há, aqui, mais do que transposição, um nivelamento entre sagrado e profano” (As Religiões no Brasil, p. 132).
Em seu trabalho de reforma espiritual da sociedade, vemos as igrejas atuais cada vez mais afeitas à mimetização de eventos musicais seculares. Muitas vezes, elas acabam assimilando o mesmo efeito de tantos espetáculos de entretenimento: muita música, muito som alto, muito marketing, muita diversão.
As cidades recebem apenas o impacto de multidões, movendo-se de um logradouro público a outro, de uma inauguração de igreja a outra, de um show a outro show. Levados à igreja supostamente pela música, os novos conversos são deixados à margem do estudo da Bíblia e sobrevivem espiritualmente pela graça de Deus e pelo poder dos chavões de cura, unção e prosperidade.
No entanto, vejo que, apesar da sinceridade que possa existir, muito músico intitulado levita tem brincado perigosamente na fronteira entre sagrado e profano. Essa fronteira é distinta daquela entre secular e sacro. O secular pode manifestar valores cristãos implícitos. O profano revela-se abertamente anticristão.
Veja o que diz a letra de “Ofertório”, de Adriano Gospel Funk:
Tem ofertante dizimista aqui? / Se tem, dá um grito
Tem mão de onça? / Se tem, vai ser queimado agora
Mano para de “caô” e deixa de ser enrolão
Se você não é dizimista “pode crer” tu é ladrão
A canção “Ofertório” apresenta características ligadas ao funk carioca, como humor descontraído, linguagem coloquial, tratamento irreverente de temas mais sóbrios e estrutura rítmica dançante. Em contraste com a seriedade e a solenidade que marcam as composições feitas para o tradicional recolhimento de dízimos e ofertas nas igrejas protestantes históricas, essa canção denota uma ambiguidade que apaga a seriedade da mensagem, já que seu teor humorístico confunde os limites tradicionais entre sacro e secular, a ponto de não ser possível definir imediatamente se a canção pretende incentivar ou satirizar a doutrina.
No mesmo espírito, o hit “Créu” foi adaptado para “Céu”. É como se batizassem a canção original e agora ela fosse capaz de emitir significados altamente espirituais e cristãos. Mesmo quem não pertence oficialmente a uma igreja, se permite fazer uma paródia gospel de sucessos seculares.
Não culpem os satiristas. Quem começou com isso foram os próprios evangélicos.
O hit do momento “Ai, se eu te pego” tem agora uma versão gospel chamada “Deus, eu te quero”. O compositor de tal paródia vai dizer que esta é uma forma de chamar atenção para o evangelho, mas muitos cristãos dirão que tal versão é mais um episódio do infindável catálogo de vexame gospel. E mesmo quem não crê no evangelho dirá que se trata de mais uma performance típica de um evangelicalismo intelectualmente decadente.
E ainda tem gente que acha que não importa como a mensagem seja pregada, o importante é pregar a mensagem! Pobre de nosso evangelismo que perdeu até os bons modos.
Joêzer Mendonça é músico e faz doutorado em musicologia na Unesp. É autor do blog Nota na Pauta, onde escreve sobre arte, mídia e religião. Na imagem, o titã Atlas, que segundo a mitologia grega carrega o mundo nas costas

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