Na foto, fica assim: Pré-Reformadores:Wycliffe e John Hus
Reformadores:Calvino e Lutero
O Princípio da Reforma
(1324-1459)
Supõe-se
que João Wycliff nasceu nas proximidades de Richmond, no condado de York, na
Inglaterra, pouco mais ou menos em 1324. A pobreza de seus pais, que parece
terem sido camponeses, não o impediu de entrar, na idade própria, na
universidade de Oxford, onde aproveitou todas as ocasiões para se instruir,
ganhando bem depressa as boas graças do seu tutor, o piedoso e sábio Thomas
Bradwardine, que fazia dele muito bom juízo. Durante os seus estudos adquiriu
um bom conhecimento não só das leis civil, canônica e municipal, mas também da
ruína da natureza humana, como as Escrituras a ensinam, da inutilidade do
merecimento humano para a salvação, e da grandeza da graça divina, pela qual o
homem pode ser justificado sem as obras da Lei. Diz-se também que, por conselho
do seu tutor, estudara as obras de Grostete, e dali lhe viera a idéia de que o
papa era o Anticristo.
Os
seus ataques às ordens mendicantes, que atraíam os estudantes da universidade
para os seus mosteiros, tornaram-no notável em Oxford. Ele escreveu alguns
folhetos sobre o assunto. Era Wycliff nesse tempo professor da universidade,
mas isso não o impediu de continuar no seu trabalho pelo Senhor, e, aos
domingos, despia a toga de professor e pregava ao povo o Evangelho simples na
linguagem popular.
A
fama das suas pregações bem depressa chegou a Roma, e os frades mendicantes,
cuja influência estava muito abalada pelo seu ensino, apressaram-se a dar a
saber ao papa os seus receios. Para isso usaram de um meio muito eficaz
extraindo dos escritos de Wycliff dezenove artigos, e mandando-os ao papa,
juntamente com as suas cartas; e, como a maior parte destes artigos, combatiam
de uma maneira muito clara as pretensões temporais do papa, pode-se facilmente
imaginar qual foi o resultado. Nove dos extratos foram logo condenados como
heresias e outros declarados errados, e foram mandadas imediatamente ordens à
Inglaterra para que o ousado herege fosse levado aos tribunais pelas suas
opiniões. Isto foi o princípio do conflito, mas Roma ainda desta vez se enganou.
Ataque ao Reformador
Ao
atacar o reformador, tinham atacado um homem com amigos, porque Wycliff
tinha-os em todas as classes. A classe popular estimava-o porque ele se
interessava pela sua causa e lhes explicava as Sagradas Escrituras em linguagem
que podiam compreender; os fidalgos eram seus amigos porque ele os ajudava a
resistir ao clero; e em Oxford não era menos estimado pela sua piedade do que
respeitado pelo seu saber.
No
mês de fevereiro do ano 1377 foram abertas as sessões da Convocação de S. Paulo,
e para ali se dirigiu Wycliff, acompanhado de seus amigos João de Gaunt, duque
de Lencastre e Lord Percy, marechal da Inglaterra. Receavam estes que se ele
fosse sozinho não seria ouvido com imparcialidade, e podia talvez ser vítima de
um jugo odioso; e quando começou o julgamento, a conduta de Guilherme Courtenay
bispo de Londres mostrou bem que tinham razão de ter receios.
A
multidão de gente dentro da catedral era enorme, e o marechal teve de empregar
a sua autoridade para poder chegar ao pé dos juízes. Isto excitou o bispo
imensamente, e seguiu-se uma cena tumultuosa. "Se eu soubesse,
senhor," disse ele, "que queríeis ser senhor nesta igreja, teria
tomado as minhas medidas para vos impedir de aqui entrar". O duque de
Lencastre, que era nesse tempo regente do reino pela menoridade do rei Ricardo
II, aprovou o ato do marechal, e observou que era "necessário manter a
ordem apesar dos bispos". Courtenay a custo conteve a sua ira, mas quando,
em seguida, o marechal pediu uma cadeira para Wycliff, exclamou, encolerizado,
"Ele não deve sentar-se; os criminosos conservam-se de pé perante seus
juízes". De ambos os lados se levantou novamente uma grande discussão, e
só Wycliff se conservou silencioso; no entanto, o povo, seguindo o exemplo dos
seus chefes, começou a exprimir sua própria opinião com atos de violência. Era
impossível prolongar a sessão em tais circunstâncias; portanto, encerraram o
tribunal, e o reformador saiu da catedral acompanhado pelo duque de Lencastre.
Dois Papas ao Mesmo Tempo
Por
algum tempo deixaram-no em paz, e Roma teve de se ocupar duma questão mais
séria, que exigia toda a sua atenção. Tratava-se nem mais nem menos do que a
eleição de um papa rival em Findi, Nápolis. O pontífice romano, Urbano VI,
desgostara de tal maneira os seus cardeais pela sua aspereza e severidade, que
estes tinham julgado conveniente prestar a sua fidelidade a outro, e tinham
investido dessa dignidade Roberto, conde de Genebra. Este, depois de ser
devidamente eleito, estabeleceu a sua residência em Avignon, França, sob o
título de Clemente VII, e ali foi reconhecido como papa pela Escócia, Espanha,
França, Sicília e Chipre. O resto da Europa ainda considerava Urbano como o
legítimo "sucessor" de S. Pedro.
Como
era de esperar, este notável cisma ainda mais excitou o zelo de Wycliff contra
o papismo, e deu-lhe novos motivos para vencer. "Confiemos na ajuda de
Cristo", exclamou ele, "porque Ele já começou a ajudar-nos pela sua
graça, fendendo a cabeça do Anticristo em duas, e fazendo com que as duas partes
comecem a guerrear uma contra a outra". Ele já tinha declarado que o papa,
o soberbo padre mundano de Roma, era o Anticristo, e o mais maldito dos
exploradores da bolsa alheia, e agora Wycliff não teve escrúpulos em afirmar
que tinha chegado o momento oportuno para extinguir o mal inteiramente.
Wycliff Citado de Novo
Afirmando
isto, porém, antecipava o futuro, e sendo citado segunda vez para comparecer
perante os seus acusados, viu que muitos dos seus amigos o tinham abandonado
por causa das suas idéias extremistas, e entre eles o duque Lencastre. Mas Deus
não o tinha abandonado, e o abandono dos amigos terrestres deu-lhe pouco
cuidado. No seu primeiro julgamento tinha ele talvez estado, sem o saber, a
fazer da carne a sua arma, mas agora não era assim, e apresentou-se no tribunal
sozinho. Contudo, bastantes pessoas que esperavam ser ele provavelmente
devorado naquela caverna de ladrões, encaminharam-se para a capela, na intenção
de lhe acudir aos primeiros sintomas de traição que se manifestassem.
Os
prelados tinham ido para o concílio confiados e altivos, certos de uma vitória
fácil, mas ao observarem estas manifestações populares, ficaram inquietos e,
quando, ao começar os interrogatórios, receberam uma ordem da mãe do jovem rei
proibindo-os de pronunciar qualquer sentença definitiva sobre a doutrina
conduta de Wycliff, a sua derrota foi completa.
Wycliff Traduz a Bíblia
Assim
pois, pela graça de Deus, Wycliff escapou ainda mais uma vez das garras dos
seus perseguidores, e pôde, pouco depois, ocupar-se com a grande obra da
tradução da Bíblia na linguagem do país. Havia muito tempo que ele manifestara
o desejo de que os seus patrícios pudessem ler o Evangelho da vida de Cristo em
inglês, e havia agora todas as possibilidade de ver o seu desejo satisfeito.
Poucos meses mais tarde essas probabilidades tornaram-se em certeza, e, à
proporção que o trabalho ia chegando ao fim, o ousado reformador começou a
sentir que a sua missão na terra estava quase terminada. No ano de 1383 viu a
sua obra completa, e, apesar de os bispos fazerem toda a diligência para que a
versão fosse suprimida por lei do Parlamento, os seus esforços não tiveram
resultado, e em breve a Bíblia começou a circular por todo o reino.
Morte de Wycliff
Wycliff
porém não viveu o suficiente para ver a oposição dos bispos, pois que a 31 de
dezembro de 1384, depois de uma vida agitada de sessenta anos, entrou no
descanso eterno; e, posto que os seus amigos receassem que ele morresse de
morte violenta, Deus tinha determinado outra coisa e assim morreu pacificamente
em Luterworth. Os agentes de Roma foram pois logrados na esperança de alcançar
a desejada presa, mas ainda assim o seu corpo foi mais tarde desterrado e
queimado, e as cinzas lançadas num regato próximo, "O regato", diz
Fuller, "levou as cinzas ao rio Avon; o Avon levou-as ao Saverna; o
Saverna ao canal, e este ao grande oceano. E assim as cinzas de Wycliff são os
emblemas da sua doutrina, que se acha agora espalhada pelo mundo inteiro".
Os Lollardos
Quando
Wycliff morreu os seus adeptos eram muitos, e havia-os entre todas as classes
da comunidade. Parece que era em Oxford que havia maior número, e quando o Dr.
Rigge, chanceler da universidade, recebeu ordem para impor silêncio àqueles que
favoreciam o reformador, respondeu que não ousava fazê-lo por ter medo de ser
morto. Todos os que adotaram publicamente a doutrina de Wycliff eram chamados
de lollardos, mas é certo que mesmo antes de Wycliff aparecer já existiam
muitos cristãos com essa denominação. As suas doutrinas e opiniões eram em tudo
iguais às do reformador, e parece que foram tão infatigáveis como ele em as
espalhar. Assim como Wycliff, eles também ensinavam que "o Evangelho de
Jesus Cristo é a única origem da verdadeira religião; que não há nada no
Evangelho que mostre que Cristo estabeleceu a missa; que o pão e vinho, ainda
depois de consagrados, ficam sendo pão e vinho; que os que entram para os
mosteiros ainda se tornam incapazes de observar as ordens de Deus; e,
finalmente, que a penitência, a confissão, a extrema unção, não são precisas,
nem se fundam nas Escrituras Sagradas".
Pensar
que Roma deixaria viver tais incorrigíveis hereges, sem se incomodar, seria
supor que ela fosse capaz de tolerância e misericórdia – qualidades estas que
nunca patenteou. Não era este o seu modo de proceder; e se os lollardos não
foram logo perseguidos pela sua cólera, foi unicamente porque lhes faltavam os
meios de tornar bastante eficaz a perseguição. Contudo, a subida ao trono de
Henrique IV forneceu-lhe a oportunidade que esperava. Os padres e os frades
tinham estado no entanto bastante ocupados em espalhar falsos boatos sobre o
procedimento revolucionário dos lollardos, e tinham inspirado tais receios à
nação que, quando no ano de 1400 o novo rei fez publicar um edito real
determinando que os hereges fossem queimados, o Parlamento prontamente o
sancionou.
Tempo de Martírios
Se
fôssemos descrever todos os martírios que fizeram os "hereges" sofrer
durante esta perseguição, teríamos de escrever um martirológio, e isso iria
muito além dos nossos limites. Guilherme Sautree teve a honra de ser a primeira
vítima desta nova lei. A ele seguiu-se João Badby, um artista de Worcester,
cujo martírio foi presenciado pelo jovem príncipe de Gales – depois Henrique V.
Conta-se deste mártir que, quando acenderam o fogo, ele pedira misericórdia, e
Henrique ordenara que fosse tirado das chamas. Trazido à sua presença, o
príncipe perguntou-lhe: "Queres abandonar a heresia e conformar-te com a
fé da santa madre igreja? Se queres, terás sustento por um ano tirado do
tesouro do rei". Mas João Badby tinha estado a pedir misericórdia de Deus
e não dos homens, e a sua firmeza não se abalou com mais esta prova. Foi, em
conseqüência, levado segunda vez para as chamas.
Como
os lollardos aumentaram cada vez mais, o arcebispo Arundel fez convocar um
concílio no ano de 1413, a fim de procurar melhores meios de os suprimir, e
desde esse tempo, durante perto de um século, as chamas da perseguição foram
ardendo por toda a Inglaterra, e conservou-se o mesmo rigor na busca dos
hereges; mas Deus tinha decretado que a obra dos seus servos prosseguisse; e
quem poderia deter a sua mão? As miseráveis criaturas de Roma podiam fazer
diminuir o pequeno bando de cristãos, por meio do fogo e outras torturas, e
prisões (as tribulações eram o quinhão que os fiéis discípulos esperavam), mas
não podiam destruir a obra que Deus tinha começado. A sua Palavra – aquela
semente incorruptível que vive e permanece eternamente – estava nas mãos do
povo, e enquanto o poder dela estivesse entre eles, as armas de Roma eram
impotentes, e a obra de Deus nas almas havia de se efetuar para a sua glória.
Lutero e a Reforma Alemã
(1483-1522)
Desde
há muito, a doutrina da justificação pela fé tinha sido perdida de vista na
igreja, e foi este um dos fatos pelos quais a Reforma se tornou uma
necessidade. Logo que o poder desta verdade enfraqueceu nas almas dos fiéis,
foi introduzida a doutrina de salvação pelas obras, e substituíram por
penitências e mortificações exteriores aquele arrependimento para com Deus e a
santificação íntima. Estes erros começaram logo no tempo de Tertuliano e
aumentaram à proporção que iam passando os anos, até que por fim, a superstição
do povo não se podia levar mais adiante, e as trevas da Idade Média foram a
origem dos flagelantes.
As Indulgências
Os
flagelantes, uma seita de fanáticos, foi instituída no século treze, e
espalhou-se por uma grande parte da Europa. Andavam pelas ruas meio-nus,
flagelando-se duas vezes por dia com chicotes. A severidade destes castigos,
que imaginavam servir de expiação, não só dos seus pecados, como também dos
pecados dos outros, excitou a princípio a perseguição, mas por fim despertou a
simpatia do povo, que começou a virar as costas aos padres desregrados e a
confessar os seus pecados e tristezas aos flagelantes. O pensamento dominante
dos padres foi então ver como poderiam conservar a influência do domínio
usurpado, "e portanto", disse d'Aubigné, "inventaram um negócio
novo a que chamaram indulgências". Em troca de uma quantia mais ou menos
avultada, conforme a classe a que o comprador pertencia, ficava este livre de
uma peregrinação, de um jejum, ou de outra qualquer penitência; e assim começou
esse detestável negócio.
O
papa percebeu logo que as vantagens que podiam resultar de um sistema tão
lucrativo e, em tempo oportuno, Clemente VII instituiu o extraordinário dogma
de que a crença nas indulgências era um artigo de fé.
Estas
indulgências de Roma não diziam respeito só aos vivos; iam além da tumba, e as
almas que gemiam no Purgatório também se diziam que eram salvas por meio delas.
A
venda de indulgências era necessariamente um grande incentivo ao pecado, e, na
verdade, os ignorantes nada podiam ver nesta doutrina senão uma licença
absoluta para praticarem o mal, enquanto que os padres, que aproveitaram cada
vez mais tais idéias erradas, não tinham pressa em esclarecer o povo.
Tal
era a condição da igreja no começo do século dezesseis: tão corrupta nas suas
ações, que era impossível continuassem as coisas assim por muito tempo como
estavam.
Não
obstante isso, Roma vangloriava-se e estava confiante, porque tinha poucos
inimigos declarados que a incomodassem. Os hussitas tinham sido, uns espalhados
pela perseguição, outros atraídos de novo para o grêmio da igreja; e o
testemunho dos cristãos valdenses tinha sido quase suprimido. Mais ainda: havia
um sentimento de insatisfação nos corações dos homens de todas as classes que
nem o fumo do fogo dos mártires sacrificados por Roma podia apagar, nem as
promessas enganosas dos padres aliviar. Reis e fidalgos, cidadãos e camponeses,
teólogos e homens de letras, políticos e soldados tinham todos as suas razões
de queixa, e estavam moralmente preparados para a obra de Reforma. A Europa
tinha despertado do longo pesadelo da Idade Média, e estava agora olhando,
ainda que com olhos de sono, através do nevoeiro de uma longa superstição, à
procura da luz. Era inevitável uma mudança importante, uma reação; mais ainda,
uma revolução; e apenas era necessário achar um chefe. O espírito dos homens
estava pronto para a revolução; e só necessitava de um que agüentasse o peso da
luta para os guiar, aconselhar e dirigir.
Deus
viu o que era preciso e enviou Martinho Lutero à Igreja na Europa.
Não
faltaram líderes para seções e grupos particulares, mas Lutero havia de ser o
chefe. Os príncipes e fidalgos, de há muito desgostosos com a usurpação
sucessiva dos seus domínios pelos papas, encontraram no eleitor Frederico de
Hanover um representante dedicado, embora tímido; os políticos e homens de
letras, oprimidos pelas leis canônicas acharam um intérprete dos seus pesares
em Ulrico Von Hutten, mas todos, desde o rei até o mais humilde, encontraram o
defensor das suas liberdades no grande monge Agostinho, Martinho Lutero.
Martinho Lutero
O
reformador era filho de pais humildes, nasceu em Eisleben na província de
Mansfeld, no dia 10 de Novembro de 1483. "Eu sou filho de
camponeses", dizia ele mais tarde, "meu pai, meu avô, e todos os meus
antepassados eram camponeses". Foi de seus pais que ele herdou aquela rude
simplicidade e temperamento franco e alegre, peculiar do camponês da Turíngia.
A educação que recebeu em casa era reta e religiosa, e o tratamento que recebeu
na escola era áspero em extremo, mas tudo isso foi necessário para preparar o
futuro reformador para a sua grande e perigosa obra.
Aos
quatorze anos de idade foi mandado para a escola franciscana em Magdeburgo onde
aumentaram muito os seus sofrimentos. Conta ele que quase o matavam de fome, e
muitas vezes era obrigado a cantar nas cidades e vilas próximas para angariar
pão. Algum tempo depois mandaram-no para Eisenach, onde tinha parentes, mas
estes deram-lhe pouco ou nenhum alívio. Teve de continuar a vaguear, esfomeado
e miserável, pelas ruas cantando hinos e pedindo "panem propter Deum"
às portas dos desconhecidos, agradecendo muito até as migalhas que lhe eram às
vezes lançadas. Mas por fim chegou o alívio. Aquilo que os parentes tinham
negado, deram-lhe os estranhos; e uma tarde depois de ter pedido a diversas
portas sem resultado, chegou a uma onde não foi repelido. Os cristãos hão de
sempre recordar com afeto e gratidão o nome Úrsula Cotta, porque foi ela que
abriu as suas portas ao pobre rapaz esfomeado e lhe deu não só o sustento, mas
um lar e amor de uma mãe. Lutero teve ocasião, mais tarde, de retribuir a sua
bondade, recebendo também o filho de Úrsula na sua própria casa em Wittenberg.
Lutero na Universidade
Quando
tinha dezoito anos, foi, por ordem de seu pai, para a Universidade de Erfurt
estudar direito, e foi ali que seu espírito tomou uma série orientação pela
morte repentina de seu condiscípulo e amigo íntimo Aleixo. Isto teve lugar por
ocasião dumas férias pequenas, quando ambos passeavam juntos. Ao passarem por
Thuringen-evald foram surpreendidos por uma grande tempestade, e o leviano
Aleixo foi atingido por uma faísca elétrica. Caindo de joelhos, com o impulso
no momento, Lutero fez um voto de se consagrar ao serviço de Deus, se Ele o
poupasse na ocasião.
Desde
então mudou completamente. Levou bastante tempo antes que lhe voltasse o amor
pelo estudo, e passava dias e dias vagueando pensativo pela biblioteca da
Universidade, como alguém que não pudesse achar descanso. Por fim veio-lhe às
mãos uma Bíblia em latim, e tendo um perfeito conhecimento daquela língua,
começou a ler o livro. Era esta a primeira vez que tinha olhado para aquele
livro sagrado, e a sua surpresa foi grande. Nele encontrou uma sabedoria mais
profunda do que imaginara, pérolas preciosas de verdade que nenhum missal ou
breviário podia ensinar, e inclinou-se sobre seu novo tesouro num arrebatamento
da alma. A proporção que lia ficava mais persuadido da autoridade divina do
livro sagrado, e ia-se possuindo de uma convicção profunda da sua própria
maldade. Até ali as palavras inspiradas tinham para ele um sentido misterioso e
estava como alguém que procurasse o seu caminho às apalpadelas em plena luz do
sol. Perplexo e trêmulo, fechou o livro, e, após, fez uma lista dos seus
pecados, que o encheu de um vago receio. Nunca tinha, até então, pensado
seriamente neles; nunca os tinha considerado sob um ponto de vista tão negro.
Uma tão medonha série tinha-lhe, por suposto, fechado as portas do Céu para
sempre; não podia haver esperança para um homem tão vil como ele. Então Lutero
lembrou-se de repente de seu voto, e ergueu-se com um novo propósito no
coração: Sim; ainda restava uma esperança – deixaria a Universidade e far-se-ia
monge.
Lutero Num Mosteiro
Vamos
agora encontrá-lo no mosteiro dos frades agostinhos, em Erfurt, e como tudo
está mudado! Quando o deixamos era ele um inteligente estudante de Direito, um
bacharel de artes, e o ídolo da Universidade; agora é um monge, e o mais íntimo
entre eles. Aquele que outrora tinha pronunciado discursos e tomado parte em
discussões sábias era agora o criado da sua ordem, e tinha de limpar as celas,
dar corda ao relógio, e varrer a capela do mosteiro! Contudo Lutero
sujeitava-se a estes trabalhos penosos, inerentes à sua nova posição, sem se
queixar; a luta moral porque estava passando quase lhe fazia esquecer a
degradação. Muitas vezes, quando sentia a sua alma apoquentada, deixava seu
trabalho para ir à capela do mosteiro, onde estava guardada a Bíblia, e ali
procurava o alimento espiritual de que carecia. E era só nestas ocasiões que
ele podia estudar a Palavra de Deus.
Mais
tarde, porém, foi nomeado para a cadeira de teologia e filosofia de Wittenberg,
que se achava vaga. A nomeação foi feita por Staupitz, vigário geral da ordem
Agostinha de Saxônia, por conselho de Frederico, o Sábio, Eleitor de Hanover.
Lutero era agora até um certo ponto senhor do seu tempo, e podia dedicar-se
mais ao estudo da Bíblia. A solidão de sua cela era muito conveniente para esse
fim, e ele estudava com um zelo pouco vulgar. Fazia esforços extraordinários
para reformar o seu modo de viver, e para expiar o passado por meio de orações
e penitências, e foram muitos os votos que ele fez para se abster de pecado,
mas estes esforços nunca os satisfazem, e quebrava sempre os seus votos.
"É em vão", dizia Lutero tristemente a Staupitz, "que eu faço
tantas promessas a Deus: o pecado é sempre o mais forte". Staupitz
discutia brandamente com ele, e falava-lhe do amor de Deus e que Deus não
estava zangado com ele, como Lutero supunha; mas o monge continuava
desconsolado. "Como posso eu ousar crer na graça de Deus", dizia ele,
"se é certo que ainda não se operou em mim uma conversão? Preciso
necessariamente mudar de vida para ser aceito por Ele".
A
sua ansiedade tornou-se mais profunda do que nunca, e os esforços para
apaziguar a justiça divina continuavam com um zelo incansável. "Eu era na
realidade um monge piedoso", escreveu anos depois, "seguia os
preceitos da minha ordem com mais rigor do que posso exprimir. Se fosse
possível a um monge obter o Céu por suas obras monacais eu era, certamente, um
dos que tinha direito a isso. Todos os frades que me conheceram podem ser
testemunhas. Se tivesse continuado por muito mais tempo as minhas penitências
ter-me-iam levado à morte, a força de vigílias, orações, leituras e outros
trabalhos".
O
monge tinha ainda, de aprender a significação destas palavras: "Porque
pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus.
Não vem das obras, para que ninguém se glorie" (Ef. 2.6,9).
As
repetidas conversações com Staupitz davam-lhe uma certa esperança, e de vez em
quando sentia um estremecimento de alegria, e o seu coração ganhava confiança.
Mas a lembrança dos seus pecados tornava a voltar e a sua alma perturbada
tremia de horror ao pensar no julgamento a que tinha de comparecer. "Oh!
Os meus pecados! Os meus pecados!" exclamou ele um dia diante do vigário
geral; e quando Staupitz lhe falou em Cristo como o Salvador do pecado e da
impureza, as suas palavras pareciam ser um mistério impenetrável para o pobre
monge.
Por
fim a sua saúde ressentiu-se de tal maneira por tão repetidas vigílias e
mortificações que chegou a estar às portas da morte. E então aos seus outros
receios juntava-se mais o terror do seu próximo fim, e o medo do julgamento
futuro mergulhava-o num abismo ainda mais profundo.
Que
lhe aconteceria se morresse sem estar salvo? Que aconteceria se morresse nos
seus pecados? Ainda não tinha uma certeza completa de misericórdia divina;
aqueles pecados ainda não tinham sido postos de parte, e ele receava levar a
sepultura o peso deles.
Nesta
triste condição foi um dia visitado na sua cela por um monge piedoso, que lhe
disse algumas palavras de consolação. Lutero, vencido pela bondade dessas
palavras, abriu o seu coração ao velho monge, mal imaginando o que havia de
resultar daí. O monge não podia segui-lo em todas as suas dúvidas, mas
repetiu-lhe ao ouvido uma frase do Credo dos Apóstolos que muitas vezes o tinha
consolado: "Creio na remissão dos pecados". Foi esta mensagem de Deus
para a alma de Lutero, e agarrou-se àquelas palavras com uma energia quase
desesperada. "Eu creio", repetia ele para consigo, "eu creio na
remissão dos pecados".
"Atendei
ao que diz S. Bernardo, e ao testemunho que o Espírito Santo produz no vosso
coração que é este: Os teus pecados te são perdoados". A luz brotou
naquele coração atribulado; e Lutero deu graças a Deus por essas palavras serem
verdadeiras com respeito a ele mesmo.
Lutero Vai a Roma
Mas
embora verdadeiramente convertido, Lutero ainda se conservava escravo de Roma;
e foi só depois de ter feito uma visita à cidade papal que ele começou a
descobrir a corrupção que ali existia, e a sentir-se abalado na sua obediência
à igreja romana. Tornou-se necessária esta visita de caráter oficial em
conseqüência de uma questão que se levantou entre o vigário geral e sete dos
conventos, e no tempo o competente Lutero pôs-se a caminho. Quando avistou Roma
prostrou-se, e exclamou: "Santa Roma eu vos presto a minha
homenagem", considerando-a como o campo de ação de S. Pedro e S. Paulo.
Mas
quando entrou na cidade abriram-se-lhe os olhos. Começou a compreender que o
poço de corrupção era realmente a metrópole do catolicismo e durante algum
tempo ficou atordoado. Por onde quer que se dirigisse encontrava sempre o mesmo
mal, e entre os habitantes da cidade, os que em mais alta voz proferiam
blasfêmia ou mais se distinguiam pela sua infidelidade eram os próprios padres.
Enquanto um dizia a missa num altar, diziam-se sete no altar próximo. Também
ouviu da boca dos próprios monges uma história que horrorizou e o perturbou.
Contaram eles, no meio de gargalhadas, que quando diziam missa, em lugar de
pronunciar as palavras sacramentais sobre o pão e o vinho com que suponha
transformá-los no corpo e sangue de Cristo, freqüentemente repetiam estas
palavras: "Panis es, et Panis manebis; vinum es, et vinum manebis" –
Pão és, e pão ficarás; vinho és, e vinho ficarás.
O
que fica dito apenas mostra a grande impiedade que Lutero encontrou em Roma
durante a sua curta permanência ali; podíamos, se fosse necessário, mencionar
muito mais. Foi pois com a alma entristecida pelo que ali tinha visto que
Lutero saiu da cidade de Roma e voltou para a sua terra natal.
Lutero Volta para
Winttenberg
Quando
ali chegou, formou-se em teologia, e os seus sermões começaram a atrair a
atenção na igreja da ordem Agostinha em Wittenberg, onde se reuniam grandes
multidões para o ouvirem. A sua magnífica exposição, e sua eloqüência, a sua
admirável memória, e sobretudo a evidente força das suas convicções, cativavam
todos os que o ouviam, e o Dr. Martinho Lutero tornou-se o assunto das
conversações entre as pessoas ilustradas. Mas o que o tornou mais geralmente
notável foi a sua contenda com João Tetzel, o monge dominicano de Leipzig.
Tetzel tinha vindo vender indulgências no próprio lugar onde Lutero estava
cumprindo com os seus deveres de confessor do povo de Wittenberg. Tornava-se,
pois, inevitável uma questão entre eles.
Discurso de Tetzel
Subindo
ao púlpito, perto do qual estava colocada uma grande cruz vermelha encimada
pelas armas papais, Tetzel começou o seu discurso. Falava alto e animadamente,
e fazia do Purgatório uma descrição medonha que fascinava o auditório,
despertando em todos a maior solicitude pelas almas dos seus amigos já
falecidos. Falou das grandes vantagens da comodidade que ele proporcionava aos
seus ouvintes, pois não havia pecado algum que tivessem cometido que se não
pudesse lavar com uma indulgência. Ainda mais, estas indulgências eram eficazes
não somente com respeito aos pecados presentes, mas também sobre os pecados
passados e futuros. E ainda os pecados que os seus ouvintes tivessem o desejo
de cometer podiam ser perdoados com antecedência pelas suas cartas de
absolvição: "Eu não trocaria o meu privilégio", disse o monge loquaz,
"pelo de S. Pedro no Céu, porque eu tenho salvo mais almas com as minhas
indulgências do que o apóstolo com os seus discursos".
Estas
observações eram escutadas com uma atenção extraordinária, mais os seus apelos
a favor dos mortos produziram ainda mais resultado. "Padres, nobres,
mercadores, esposas, moços, moças", exclamou ele, "ouçam a vossos
pais e amigos já mortos, gritando-vos do abismo profundo – Nós estamos sofrendo
um martírio horrível! Uma pequena esmola nos poderia salvar; vós podeis dá-la,
e contudo não quereis fazer! – Ouçam estes gritos, e saibam que logo que soar
uma moeda no fundo da caixa a alma solta-se do Purgatório e dirige-se em
liberdade para o Céu... Como sois surdos e desleixados! Com uma insignificante
quantia podeis livrar o vosso pai do Purgatório, e apesar disso sois tão ingratos
que não comprais a sua liberdade! No dia do juízo eu serei justificado, mas vós
sereis castigados tanto mais severamente por terdes desprezado tão grande
salvação".
Concluído
o discurso, os fiéis chegaram-se às pressas para onde se achava o vendedor de
indulgencias, e ali fizeram as suas compras. A maior parte deles ficaram
provavelmente, muito satisfeitos com o seu negócio, e, quando no dia seguinte
se foram confessar, foi sem idéia nenhuma de se emendarem dos seus pecados. Não
tinham eles, porventura, consigo um documento assinado pelo irmão João Tetzel,
em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que lhes restituía a inocência e
pureza que tinham na hora do seu batismo, assim como também os declarava
isentos das conseqüências de futuros pecados até o dia da sua morte?
William Tyndale
No entanto, outros ingleses, com fins mais nobres e puros, não estavam menos ocupados em outros pontos. No ano 1520 William Tyndale deixou a Universidade de Cambridge e começou a sua notável carreira.
Estando em Gloucéster, como professor em casa de um fidalgo chamado Welsh, discutia ali freqüentemente com os abades, diáconos e outros beneficiadores que se reuniam à mesa do fidalgo. Numa dessas discussões, o seu adversário, encolerizado, no calor da controvérsia, disse-lhe: "Era melhor viver sem as leis de Deus do que sem as do papa". Tyndale, no auge de indignação, exclamou: "Eu não me importo com o papa nem com as suas leis", e acrescentou: "se Deus me poupar a vida hei de fazer que em poucos anos qualquer rapaz que conduz o arado saiba mais das Escrituras do que o senhor". No fim de tudo parece que o estudante de Cambridge não era muito popular em casa do fidalgo de Gloucéster, e os seus serviços eram muito mais apreciados do que a sua companhia.
Seguindo depois para Londres, procurou Cuthbert Tonstall, que então era bispo, e diligenciou obter um lugar em casa dele, mas os seus esforços foram debaldes.
O seu destino era outro: era ser um servo do Senhor em tempos perigosos, e para isso era preciso que passasse por provas mais severas do que as que se poderia encontrar na casa de qualquer bispo. Contudo, por algum tempo esteve hospedado em casa de um tal Humphrey Monmouth, um digno cidadão de Londres que tinha um verdadeiro respeito pelo seu hóspede, e que estava ele próprio, bastante interessado no novo ensino. Mas à medida que as opiniões de Tyndale se tornaram conhecidas (e ele não era homem que escondesse a sua luz) os perigos aumentavam para ele, e os seus amigos aconselharam-no a retirar-se para a Europa.
Além disso, havia uma nova obra que estava prendendo a sua atenção - a tradução da Bíblia - e para isto necessitava de todo o sossego possível, o que em Londres não podia ter: "Estou ansioso pela Palavra de Deus", disse ele, "e hei de traduzi-la, digam o que disserem e façam o que quiserem. Deus não me há de deixar morrer. Ele nunca fez uma boca sem fazer o seu alimento, nem um corpo sem também fazer o seu vestuário". Com tal ânsia a oprimi-lo, não é de admirar que Tyndale não fizesse caso das necessidades do corpo.
Mas a perseguição aumentava cada vez mais, e, se aqueles que o rodeavam estavam sendo condenados só por lerem porções da Palavra de Deus, não era de supor que aquele que estava traduzindo a Bíblia inteira pudesse escapar. "Ah!", suspirava ele, "não haverá nem um lugar onde eu possa traduzir a Bíblia? Não é só a casa do bispo que me está fechada, mas toda a Inglaterra!" Era muito verdadeiro este queixume, e alguns dias depois de sair de debaixo do teto hospitaleiro de Humphrey Monmouth, Tyndale achava-se a caminho da Alemanha.
Tendo chegado à Alemanha, Tyndale procurou vários reformadores, passando em seguida à Saxônia, onde teve uma conferência com Lutero, e tendo-se conservado por ali algum tempo, seguiu para os Países Baixos, estabelecendo finalmente a sua residência na Antuérpia. Outros dizem que foi primeiro a Hamburgo, e dali para Colônia, sendo seguido para esta cidade pelo seu implacável inimigo Cochlaeus, do qual se diz que embriagou os impressores para obter deles o segredo da obra de Tyndale. Achando-se em perigo, seguiu para Worms, e ali completou a primeira parte da sua obra, a tradução do Novo Testamento. Na primavera de 1526, chegaram à Inglaterra cópias dessa tradução, que circularam por todo o país. A situação dos padres de Roma que estavam na Inglaterra era má, e começaram a perguntar uns aos outros o que se havia de fazer. Os alicerces do papismo estavam sendo minados e parecia que todo o edifício estava em perigo de desabar. Condenar o livro era coisa fácil, e isto estavam fazendo, mas livrar o país da nova doutrina que ele tão claramente ensinava, e evitar a entrada de novos exemplares, era uma coisa diferente. Era inútil que Henrique se desesperasse e Tonstall pregasse contra o livro; este tinha-se apoderado do coração e consciência do povo, assim como do seu espírito, e nem os clamores do rei nem os sermões do bispo podiam destruir a sua influência. Foram publicamente queimadas em Oxford, Cambridge e Londres várias cópias da tradução, e em alguns casos não só os livros, mas também os seus leitores foram lançados às chamas, mas apesar disto a obra foi para frente, porque Deus assim o queria.
Tyndale no entanto ocupava-se com o Velho Testamento, e no ano 1528 acabou os primeiros cinco livros, o Pentateuco. Durante a sua viagem a Hamburgo, onde ia imprimilos, sofreu um naufrágio e o manuscrito perdeu-se. Continuou a viagem logo que lhe foi possível e chegando a Hamburgo recomeçou o seu árduo trabalho, sendo auxiliado pelo reformador Miles Coverdale, cuja tradução das Escrituras foi publicada alguns anos depois.
Fim do Trabalho de Tyndale
Mas os trabalhos do ousado reformador deviam em breve ter o seu fim, por lhe estar destinada a coroa de mártir. Estando em Antuérpia em casa de um inglês chamado Points foi traído e entregue nas mãos dos papistas, por alguém que tinha gozado a sua confiança, e depois de se definhar na prisão durante dezoito meses (durante os quais contribuiu para a conversão do carcereiro e outras pessoas da sua casa), foi condenado ao poste. Teve por sorte ser estrangulado antes de ser queimado; a sentença foi cumprida na cidade de Vivorden no ano 1536. As suas últimas palavras pronunciadas em alta voz foram uma oração para o país tão mergulhado em trevas - "Senhor! Abre os olhos do rei de Inglaterra!"
Oposição de Lutero a
Tetzel
Porém,
o padre confessor Martinho Lutero não ligava importância nenhuma ao irmão
Tetzel, nem aos seus documentos. O seu dever era dizer ao povo que Deus odiava
o pecado; que o Inferno e não o Céu é o destino dos maus, e que, a não ser que
tivessem um verdadeiro arrependimento para com Deus, ficariam perdidos para
sempre. "Se não abandonardes vossos pecados", dizia ele,
"perecereis todos igualmente".
Era
em vão que Tetzel se encolerizava e o povo se opunha a estas sábias
declarações. Lutero mantinha-se firme: "Acautelem-se", avisava ele,
"e não dêem crédito aos clamores desses vendedores de indulgências! Há
melhores coisas em que pensar do que na compra das tais licenças, que eles
vendem pelos preços mais vis". No púlpito não era menos enfático. Em
linguagem muito clara aconselhava o povo a que não continuasse com aquele
tráfico infame.
O
seu sermão deixou o auditório muito admirado e tornou-se o assunto da geral
discussão em Wittenberg; e antes de ter passado a sensação que ele causou
apareceram as suas famosas Teses – certas proposições sobre as verdades
fundamentais do Cristianismo, que Lutero escreveu e colocou na porta da sua
igreja. Nenhum dos amigos de Lutero, nem mesmo os mais íntimos, sabia que ele
as havia escrito; e o povo de Wittenberg ficou uma manhã espantado vendo-as
colocadas na porta da igreja. O erro de tão horrível tráfico era ali claramente
exposto; e logo todos começaram a sentir que havia falado uma voz como ainda se
não tinha ouvido outra na Europa. Uma cópia das Teses caiu nas mãos de Tetzel,
e o frade dominicano ficou furioso. Chegou a valer-se de imprecações. Escrever
também algumas teses e em seguida queimar as de seu adversário foi simplesmente
acrescentar mais fel ao seu próprio cálix, porque os estudantes de Wittenberg
tomaram o partido do seu professor e responderam a isto queimando oitocentas
cópias das teses do dominicano.
No
entanto as Teses de Lutero passavam de mão em mão, e espalhou-se rapidamente a
notícia do ato arrojado do reformador. O papa soube logo desse fato, e citou o
indomável monge a comparecer em Roma, mas por conselho do príncipe de Saxônia –
um amigo verdadeiro de Lutero – a citação foi ignorada. O Príncipe lembrava-se
da sorte de João Huss, e suspeitava naturalmente das intenções de Leão X.
O Papa Denuncia Lutero
Lutero
foi pois declarado herege, e o papa, em conseqüência disso, mandou publicar uma
bula de excomunhão contra ele. Durante toda esta agitação o doutor tinha
avançado com firmeza no conhecimento da verdade, e quando recebeu a excomunhão
já se tinha de tal maneira desembaraçado das cadeias de Roma que estava pronto
para dar mais um passo, como reformador, e declarou publicamente que o para era
o Anticristo! Sem dúvida, essa declaração era arrojada, mas foi seguida de um
ato igualmente arrojado. Rodeado pelos professores e estudantes da Universidade
e vários membros da municipalidade, Lutero, na praça pública, queimou a bula do
papa!
Roma
logo teve conhecimento disso e tendo um sentimento confuso do perigo que
corria, declarou que o monge havia de morrer. Carlos V, um jovem príncipe que
dava muitas esperanças, estava então no trono da Alemanha. Era católico romano,
mas de modo algum se sujeitou incondicionalmente à autoridade da igreja. Não
obstante isso, o anúncio Aleander, então legado papal na Alemanha, induziu-o a
tomar algumas medidas com respeito a Lutero. Roma tinha as forças exaustas, e
se não tivesse do seu lado o poder temporal tudo estava perdido. Estava para se
reunir um congresso em Worms, para felicitar o jovem imperador pelo seu acesso
ao trono e para fazer os preparativos para o contrato da eleição, e era essa a
ocasião para dar uma palavra decisiva e esmagar o incômodo herege. Era este o
pensamento geral e o papa juntou-se a ele, e exprimiu o desejo de que Aleander
estivesse presente ao congresso, com o fim de ordenar o cumprimento da sua
bula.
Era
aquele uma ocasião própria para operar. O perigo ia-se espalhando e o soberano
pontífice da cristandade tinha começado a compreender a força e a coragem do
seu adversário. O espírito da Europa tinha despertado e não havia meio de o
adormecer de novo se não fizessem calar o audacioso monge. Retirar-se da luta
era simplesmente inútil, porque a voz de Wittenberg já tinha soado por toda a
Europa, e todas estavam esperando ansiosamente ouvi-la de novo. O serviço
exclusivo de três imprensas não tinha podido suprir ao povo os seus escritos
com bastante brevidade; e a sala de leitura da Universidade e a igreja dos
agostinhos não eram suficientemente grandes para conter as multidões que ali se
reuniam para ouvirem Lutero pregar. Príncipes, camponeses, poetas e homens de
estado; professores, sábios e estudantes de teologia, todos igualmente tinham despertado;
e todas as classes e todas as nações dirigiam para Lutero e sua suprema
atenção. Um monge solitário em Wittenberg fizera soar a trombeta de desafio, e
a Europa inteira estava esperando com grande interesse o resultado da próxima
luta.
Ida de Lutero a Worms
Foi
para Lutero um tempo de perigo aquele, mas a sua confiança em Deus era grande.
Determinou ir a Worms responder às acusações que lhe eram feitas, fossem quais
fossem os perigos; e quando o seu propósito foi conhecido encontrou mais uma
vez um verdadeiro amigo no Príncipe da Saxônia. Este príncipe cristão obteve
para ele um salvo-conduto do imperador e de todos os príncipes alemães por
cujos estados ele tinha de passar; e com esta proteção Lutero estava pronto a
partir. Os seus amigos estavam receosos e apreensivos, e procuraram ainda
dissuadi-lo de empreender a jornada. Mas Lutero, confiando em Deus, não se
importou com o pedido deles. "Se Jesus Cristo me ajudar", disse ele,
"estou resolvido a nunca fugir do campo, nem abandonar a Palavra de Deus".
Chegando
a Francfort, escreveu ao seu amigo Spalatim, que estava em Worms, para
arranjar-lhe um quarto; e na sua carta lê-se o seguinte período característico:
"Ouvi dizer que Carlos publicou um edito com o fim de me aterrorizar. Mas
Cristo vive; e havemos de entrar em Worms ainda que as portas do Inferno, ou
todos os poderes das trevas se opunham".
A
sua entrada naquela cidade no dia 16 de Abril de 1521 celebrou-se com uma
ovação pública; e chegaram-lhe aos ouvidos muitas palavras piedosas e animadoras,
e muito povo o abençoava quando ele atravessava as ruas para o seu alojamento.
No dia seguinte apareceu o marechal do império para o conduzir ao Congresso; e
quando o monge se dirigia por entre a multidão para a sala do concílio foi
saudado com palavras amigas por vários cavaleiros e fidalgos que se achavam ali
presentes.
Lutero no Concílio
Ao
entrar na sala do concílio o reformador ficou um tanto assombrado pelo
espetáculo pouco vulgar que se lhe apresentava. Logo defronte dele sentava-se,
vestido de púrpura e arminho, Carlos V rei de Espanha e imperador da Alemanha,
e ao lado do trono estava seu irmão, o arquiduque Fernando. A conveniente
distancia deles estavam colocados príncipes do império, duques, margraves,
arcebispos, bispos, prelados, embaixadores, deputados, condes, barões e outros.
Um tal espetáculo era bastante para perturbar o espírito do monge solitário que
tinha passado a maior parte da sua vida na solidão na sua casa de província, e
na cela do mosteiro; mas havia alguém que estava do lado dele, que era mais
suficiente para protegê-lo. Alguém que tinha dito a Ezequiel nos tempos
passados: "Não os temas, nem temas as suas palavras; ainda que sejam
sarças e espinhos para contigo, e tu habites com escorpiões, não temas as suas
palavras, nem te assustes com os seus rostos!" (Ez 2.6). Era nele que
Lutero confiava.
Os
trabalhos daquele dia foram começados pelo chanceler de Treves, um amigo de
Aleander. No meio de um solene silêncio levantou-se do seu lugar e dirigiu a
Lutero as seguintes perguntas: "Em primeiro lugar, queremos saber se estes
livros" – e apontou para as obras de Lutero que estavam sobre a mesa –
"foram escrito por vós. Em segundo lugar, se estais pronto a retratar-vos
do que escrevestes nestes livros, ou se persistis nas opiniões que neles
expusestes". Depois de ter trocado algumas palavras com o seu advogado,
Lutero deu uma resposta afirmativa à primeira pergunta, mas pediu algum tempo
para considerar a segunda. O seu pedido foi satisfeito e assim combinaram
dar-lhe até ao dia seguinte para pensar no assunto.
Aquele
espaço de tempo, exceto uns poucos momentos dedicados aos seus amigos, foi
empregado por Lutero em fervente oração a Deus, e assim animado apresentou-se
pela segunda vez perante o tribunal dos homens, mas esta vez forte e ousado; e
quando o chanceler lhe fez de novo a pergunta ele respondeu-lhe com tanta
facilidade que arrancou exclamações de admiração dos seus amigos, e confundiu
os seus inimigos. As suas censuras a todo o sistema do papismo foram fortes e
incontestáveis.
Lutero
terminou o seu discurso com palavras enérgicas de aviso ao imperador Carlos, e
pediu-lhe a proteção que a malícia dos seus inimigos tornava necessária. Sendo
instado para que desse uma resposta mais explícita à pergunta do chanceler,
respondeu prontamente: "Visto que vossa majestade e vós poderosos senhores
me exigem uma resposta clara, simples e precisa, dar-vo-la-ei, e essa resposta
é a seguinte – não posso submeter a minha fé nem ao papa, nem aos concílios,
porque é claro como o dia que eles muitas vezes tem caído em erro, até nas mais
palpáveis contradições, com eles próprios. Se, portanto, não me convencerdes
pelo testemunho das Escrituras, se não me persuadirdes pelos próprios textos
que tenho citado, libertando assim a minha consciência por meio da Palavra de
Deus, eu não posso nem quero retratar-me, porque não é seguro para um cristão
falar contra a sua consciência". Em seguida, olhando em volta daquela
assembléia, no meio da qual se conservava de pé, e que tinha bastante poder
para o condenar, disse – "Tenho dito... aqui estou. Não posso proceder de
outro modo... Deus me ajude! Amém".
Estavam
agora justificados os receios dos amigos de Lutero, de que Roma havia de
proceder traiçoeiramente na questão do seu salvo-conduto; e se o imperador
tivesse sido como Sigismundo tudo naquele dia teria acabado para o reformador.
Mas
os esforços traiçoeiros dos papistas em promover a violação do seu
salvo-conduto não acharam apoio em Carlos, e a cada nova instância dos
traidores ele respondeu resolutamente: "Ainda que a boa fé tivesse
desaparecido da superfície da terra devia sempre encontrar um refúgio na corte
dos reis". Contudo o imperador consentiu em que se publicasse um edito de
desterro; mas isso satisfez tão pouco às exigências de Roma que eles voltaram
ao seu extremo e desesperado recurso o assassinato. Fizeram-se combinações para
assassinar o reformador quando ele voltasse para a Saxônia, mas o seu bom
amigo, o príncipe, foi avisado da conspiração a tempo, e pôde frustrá-la.
Quando Lutero voltava para casa, foi repentinamente rodeado num bosque por um
bando de cavaleiros mascarados que, depois de mandarem embora as pessoas que o
acompanhavam, conduziram-no alta noite ao antigo castelo de Wartburgo, perto de
Eisnach, e ali o deixaram. Isto foi um estratagema do príncipe para pôr Lutero
num lugar de segurança, e durante este tempo de descanso que lhe proporcionava
a sua reclusão de Wartburgo, e completamente tranqüilo a respeito de decretos
imperiais e bulas papais, o reformador escreveu algumas das suas mais soberbas
obras de controvérsia, e começou a sua obra favorita, e talvez a maior de todas
– a tradução da Bíblia para a língua alemã.
Zwínglio e a Reforma Suíça
(1481-1522)
Deixando
Lutero em Wartburgo, notemos o que Deus tinha estado a fazer pelo seu povo em
outro ponto da Europa por meio de outros instrumentos. É especialmente digno de
menção que ao mesmo tempo em que se ia iniciando a Reforma na Alemanha, ia-se
abalando cada vez mais o trono papal, em conseqüência de um despertamento
religioso na Suíça, e o instrumento que Deus tinha escolhido para o cumprimento
desta obra ali foi um padre de Roma chamado Úlrico Zwínglio. Se Lutero era
filho de um mineiro, o reformador suíço não se podia gabar de ser de origem
mais nobre, visto que seu pai era pastor, e guardava seu rebanho em Wildaus, no
vale de Tockemburgo.
Zwínglio
nos Estudos
Se não fosse o fato de o pai de Zwínglio destiná-lo a igreja, podia este ter
morrido sem que seu nome jamais chegasse a nós. Mas tudo foi sabiamente
ordenado por Deus, que tinha uma obra especial e importante para dar a fazer ao
filho do pastor; e a sua mocidade foi regulada em conformidade com isso. Ainda
não tinha dez anos de idade quando o mandaram para os estudos, sob a vigilância
do seu tio, o deão de Wesen, e ali deu tais provas da sua inteligência, que seu
parente tomou a responsabilidade da sua educação e mandou-o estudar
sucessivamente em Basiléia, Berne, Viene, e de novo em Basiléia. Quando voltou
para esta cidade teve a felicidade de ficar entregue aos cuidados do célebre
Tomás Wittembach, homem que via claramente os erros de Roma, e ao mesmo tempo
não era estranho à importante doutrina de justificação pela fé. O professor não
escondia ao seu discípulo, nem os seus conhecimentos, nem as suas opiniões; e
foi ali que Zwínglio ouviu pela primeira vez, com um sentimento de admiração,
que "a morte de Cristo era o único resgate para a sua alma".
Deixando Basiléia após concluir o seu curso de teologia e depois de ter tomado
o grau de bacharel em letras, foi escolhido para pastor na comunidade de
Claris, onde ficou dez anos. Durante a sua permanência ali, dedicou-se a um
estudo profundo das Escrituras e a examinar com atenção as doutrinas e práticas
da igreja primitiva, como estavam descritas nos escritos dos antigos doutores,
e isso mais o convenceu do estado de corrupção em que se achava a igreja professa;
e começou a exprimir as suas opiniões sobre matérias eclesiásticas com uma
clareza admirável.
No ano de 1516 estava ele em Einsiedeln, no cantão de Schwyz, tendo recebido um
convite do governador do mosteiro dos Beneditinos para paroquiar a igreja de Nossa
Senhora de Ermitagem, que era então um foco da idolatria e superstição de Roma.
O que Lutero vira em Roma, viu Zwínglio em Einsiedeln; e o seu zelo na obra da
Reforma foi estimulado pelas deploráveis descobertas que ali fez. Os seus
trabalhos na Ermitagem foram abençoados, e o administrador Geroldseok e vários
monges convertidos.
Depois de um ministério fiel de três anos em Einsiedeln, o reitor dos cônegos
da igreja catedral de Zurique convidaram-no para ser seu pastor e pregador,
sendo este convite aceito. Alguns, suspeitando das doutrinas reformadas,
opunham-se à sua nomeação, mas a sua reputação era tão grande, e os seus modos
tão atraente, que estava a maioria a seu favor, e foi devidamente eleito.
Zurique tornou-se então a esfera central dos seus trabalhos, e foi ali que
travou conhecimento com Oswaldo Myconius, que mais tarde escreveu a sua vida.
Zwínglio
Pregando em Zurique
Quando ele pregava na catedral, reuniam-se milhares de pessoas para o ouvir; a
sua mensagem era nova para os seus ouvintes, e expunha-a numa linguagem que
todos podiam compreender. Diz-se que a energia e a novidade do seu estilo
produziu impressões indescritíveis, e muitos foram os que obtiveram bênçãos
eternas por meio do Evangelho puro e claro, enquanto que todos admiraram-se do
que ouviam. Era grande a sua fé no poder da Palavra de Deus para converter as
almas sem explicações humanas. Não quis restringir-se aos textos destinados às
diferentes festividades do ano, que limitavam, sem necessidade, o conhecimento
do povo com respeito ao livro sagrado e declarou que era sua intenção começar
no evangelho de São Mateus e segui-lo capítulo por capítulo, sem os comentários
dos homens. "No púlpito", diz Myconius, "não poupava
ninguém. Nem papa, nem prelados, nem reis, nem duques, nem príncipes, nem
senhores, nem pessoa alguma. Nunca tinham ouvido um homem falar com tanta
autoridade. Toda a força e todo o deleite de seu coração estavam em Deus e em
conformidade com isso exortava a cidade de Zurique a confiar somente nele".
"Esta maneira de pregar é uma inovação!" – exclamavam alguns –
"e uma inovação leva a outra; onde irá isto parar?". "Não
é a maneira nova", respondia Zwínglio, com modos cortezes e brandos,
"pelo contrário é antiga. Recordem-se dos sermões de Crisóstomo sobre
S. Mateus, e de Agostinho sobre S. João". Com estas respostas
pacíficas, desarmava muitas vezes os seus adversários, chegando até com
freqüência a atraí-los a si. Neste ponto ele apresenta um notável contraste com
o rude e enérgico Lutero.
Estava Zwínglio em Zurique havia pouco mais ou menos um ano quando a peste
visitou a Suíça, e o reformador foi atacado por ela. Ele orou a Deus
sinceramente pelo seu restabelecimento e obteve resposta para a sua oração, e a
misericórdia divina em o poupar foi mais um incentivo para uma devoção ainda
mais profunda. O poder da sua pregação aumentava sempre, e seguiu-se um tempo
de muita benção, convertendo-se centenas de pessoas; e por este motivo os
padres ficavam encolerizados e indignados. Zwínglio convidou-os mais do que uma
vez para uma disputa pública, mas eles receavam o convite, e por fim, para
fazerem calar o reformador, apelaram para o Estado. Este apelo foi a ruína
deles, porque o Estado decretou: "Visto que Úlrico Zwinglio tinha por
diferentes vezes convidado publicamente os contrários à sua doutrina a
contradizê-la com argumentos das Escrituras, e visto que apesar disto nenhum o
tinha querido fazer, ele podia continuar a anunciar e pregar a Palavra de Deus
exatamente como até então. E também que todos os ministros de religião, quer
residentes na cidade quer no campo, se absteriam de ensinar qualquer doutrina
que não pudessem provar pelas Escrituras; e que deveriam igualmente evitar
fazer acusações de heresia e outras alegações escandalosas, sob pena de castigo
severo". Assim se viu Roma presa na própria rede que armara, e mais
uma vez vencida, enquanto que o decreto se tornou um poderoso impulso para a
Reforma.
Oferta do Papa a Zwínglio
Entretanto o papa (Adriano VI), que tinha estado a ameaçar a Saxônia com os
seus anátemas, recebeu as alarmantes notícias do movimento na Suíça, e, temendo
os efeitos de uma segunda reforma, experimentou um novo estratagema com
Zwínglio. Sabia que o reformador suíço era um homem mais delicado do que
Lutero, e por isso enviou-lhe uma carta mui lisonjeira, certificando-o da sua
amizade especial, e chamando-lhe seu "amado filho" e fez acompanhar
esta epístola assucarada de provas evidentes da sua consideração. Quando
Myconius perguntou ao portador do breve papel o que era que o papa lhe tinha encarregado
de oferecer a Zwínglio, recebeu esta resposta: "Tudo menos a cadeira de
S. Pedro". Mas Zwínglio conhecia bem a astúcia de Roma, e preferiu a
liberdade com que Jesus Cristo o tinha libertado, ao jugo de superstição, e a
um barrete de cardeal.
Progresso da Reforma
Depois deste acontecimento a Reforma ganhou terreno com muita rapidez, e o
reformador recebia constantes incentivos para a obra e as mais agradáveis
provas de que Deus estava com ele. Em Janeiro de 1524 foi publicado um decreto
que determinava que as imagens fossem destruídas; em abril de 1525 foi abolida
a missa, e determinado que desde então, pela vontade de Deus, fosse a Ceia do
Senhor celebrada conforme fora instituída por Cristo, e o costume apostólico.
Mais tarde ainda, chegou a notícia da conversão das freiras do poderoso
convento de Konigsfeldt, onde os escritos de Zwínglio tinham entrado; e o
coração do reformador exultou quando recebeu uma carta que lhe tinha sido
dirigida por uma dessas convertidas. Isto foi um golpe terrível para Roma. O
efeito que um Evangelho claro e simples produziu nas freiras foi mostrar-lhes a
inutilidade de uma vida de celibato e solidão, e pediram ao governo licença
para sair do convento. O concílio, mal compreendendo as razões que elas tinham
para isso, e assustado com aquele pedido, prometeu-lhes que a disciplina do
convento seria menos severa e que lhes aumentaria a pensão. "Não é a
liberdade da carne que nós pedimos", responderam elas, "mas
sim a liberdade do Espírito". O pedido das freiras foi satisfeito
porque o próprio Concílio ficou também esclarecido; e não foram só as freiras
de Konigsfeldt que foram libertas; as portas de todos os conventos foram
abertas de par em par, e a oferta de liberdade estendeu-se a todas as internas.
Efeitos da Reforma em Berna
Em Berna o poder da verdade manifestou-se de outro modo, não menos
interessante. Os magistrados em sinal de regozijo pela grande obra, soltaram
vários prisioneiros, e concederam completo perdão a dois desgraçados que
estavam esperando o dia da sua execução: "Um grande grito",
escreve Bullinger, discípulo de Zwínglio, "ressoou por toda a parte.
Num dia Roma decaiu em todo o país, sem traições, sem violências, sem seduções;
unicamente pela força da verdade". Os felizes cidadãos, despertados
pelo poder da verdade, exprimiram os sentimentos dos seus corações da maneira
mais generosa. "Se um rei, ou imperador, nosso aliado", diziam
eles, "estivesse para entrar na nossa cidade, não perdoaríamos nós as
ofensas, e não auxiliaríamos os pobres? E agora que o Rei dos reis, o Príncipe
da paz, o Filho de Deus, o Salvador do gênero humano está conosco, e trouxe
consigo o perdão dos pecados, a nós que merecíamos ser expulsos da sua
presença, que melhor podemos nós fazer para celebrar a sua chegada à nossa
cidade do que perdoar aqueles que nos ofenderam?"
Calvino, sucessor de Zwinglio era francês e sua vinda a Genebra em 1536, aos 27anos de idade, foi fruto de um acaso. Imbuído das idéias humanistas da Renascença e simpatizante das posições anti-papistas do frade alemão Martinho Lutero, ele era mal-visto na França católica do rei Francisco 1°.
Sua primeira vinda à Suíça, em 1535, foi a Basiléia, cidade que já aderira à reforma protestante sob a influência de João Ecolampádio e Oswaldo Micônio. Calvino aí permaneceu durante cerca de um ano e aí escreveu a primeira versão, em latim, de sua Instituição da Religião Cristã, obra que se tornaria a referência teológica maior das igrejas reformadas "calvinistas" no mundo inteiro.
28 anos em Genebra
De volta à França, no curso de uma prolongada viagem em direção de Estrasburgo (que desde 1529 também abraçara as idéias de Lutero), Calvino teve de pernoitar em Genebra, onde Guilherme Farel vinha lutando há algum tempo para implantar a reforma. Quando soube da presença de Calvino na cidade, foi logo vê-lo e, à força de argumentos de toda sorte, conseguiu convencê-lo de ficar aí algum tempo a fim de ajudá-lo a consolidar a obra iniciada por Farel.
O "algum tempo" se prolongou e, salvo uma interrupção de dois anos e meio (quando foi banido da cidade pelo Conselho que o acusava de ingerência da igreja na esfera civil), Calvino passou o resto de sua vida, 28 anos, em Genebra. Tempo suficiente para aplicar na igreja e na sociedade seu ambicioso projeto de Reforma.
Com o apoio das autoridades civis, Calvino usou de sua liberdade de ação para reestruturar a igreja agora desvencilhada das amarras de Roma, promover a pregação do Evangelho exclusivamente segundo os ensinos da Bíblia, estabelecer novas diretrizes litúrgicas e sacramentais (só dois sacramentos: batismo e Santa Ceia) e capacitar os pastores (vários deles ex-padres) para sua nova missão. Formulou também normas de disciplina ética, de dedicação ao trabalho, senso de responsabilidade e austeridade de vida a serem aplicadas aos fiéis em geral a fim de coibir o que ele considerava certas tendências "libertinas" na sociedade.
Disciplina mas não despotismo
No que diz respeito a essa disciplina calvinista, de rigor não raro excessivo, ela era ressentida por alguns como atentatória à liberdade cidadã.
A noção, porém, de que Calvino exercia um poder despótico ou que pretendia criar em Genebra uma teocracia protestante, é simplesmente caricatural. Esquece-se que um dos pilares de sua teologia era a Sola gratia, ou seja, é unicamente pela generosa misericórdia de Deus que somos salvos e não por qualquer desempenho ético de nossa parte.
Já o caso do teólogo Serveto, acusado de heresia e condenado à pena capital pelo Conselho da cidade, é mais ambíguo. Calvino omitiu-se de intervir, como poderia, para evitar a aplicação da pena. Seria uma prova de conivência do reformador com a intolerância doutrinária própria do seu tempo? Muito tempo depois, em 1903, os herdeiros genebrinos do reformador fizeram ato de penitência por essa omissão com uma estela no local da execução de Serveto.
Por outro lado, essa disciplina calvinista explica em boa parte a prosperidade econômica que a Reforma trouxe a Genebra. Não é por acaso que certos estudiosos, Max Weber e outros, vêem no calvinismo o germe do capitalismo moderno.
A Obra em Basiléia
Em Basiléia, uma das comarcas mais poderosas da Suíça, as doutrinas da Reforma
espalharam-se com incrível rapidez, e produziram os melhores resultados. Os
zelosos burgueses limparam o país das suas imagens, e quando o humilde e
piedoso Oecolâmpade (o Melanchton da reforma Suíça), acabou de completar um
ministério fiel de seis anos na comarca, adotaram em todas as igrejas o culto
reformado, que foi firmemente estabelecido por um decreto do Senado.
O coração exulta ao descrever esta gloriosa obra de Deus, e sentimos não poder
continuar uma tarefa tão agradável, mas falta-nos espaço.
Zelo de Lutero na Reforma
(1521-1529)
Os Desordeiros de Zwickau
Voltemos
agora a Lutero, a quem deixamos no solitário castelo de Wartburgo, entregue à
tradução da Bíblia. Durante a sua permanência ali não havia ninguém que pudesse
cabalmente levar por diante a obra que ele tinha empreendido na Alemanha; e
este pensamento – porque ele estava a par de tudo quanto se passava fora do
castelo – fazia-o estar ansioso e agitado, e por fim levou-o a voltar a
Wittenberg. Melanchton era tão instruído como ele, e, sem dúvida, não era menos
firme na sua devoção pela causa que ambos defendiam, mas era muito brando e
pacífico para o rude trabalho que Lutero tinha começado, e não parecia estar em
condições de poder dirigir o movimento reformador naqueles tempos tumultuosos.
Havia ali também André Carlostadt, um doutor em Wittenberg, bastante versado
nas Escrituras Sagradas, mas com algumas idéias erradas na sua teologia, e além
disso arrojado demais para se poder confiar nele como chefe. Os seus atos eram
tão imprudentes que quando em Zwinckau se levantou um grupo de homens com o fim
manifesto de abolir sumariamente tudo que não estivesse expressamente prescrito
na Bíblia, ele aplaudiu esse procedimento, e colocou-se à frente deles.
Imagens, crucifixos, missas, vestes sacerdotais, confissões, hóstias, jejuns,
cerimônias, decorações de igrejas – tudo estava para ser imediatamente varrido
pela destruição; e todo o Cristianismo se devia revolucionar, pelas influências
combinadas do Evangelho e da espada.
Lutero
logo que teve conhecimento disto, escreveu de Wartburgo aos amotinadores,
dizendo-lhes que não aprovava o seu procedimento, nem se poria ao lado deles
neste caso. "Tinha sido", dizia ele, "empreendido sem termos,
com muito atrevimento e violência... Acreditem-me, eu conheço bastante o
Demônio; só ele podia fazer as coisas deste modo, para trazer vergonha sobre a
Palavra". As suas advertências foram porém inúteis; as medidas que ele
propunham eram muito brandas e moderadas para os iconoclastas de Wittenberg, e
foram por diante com as suas inovações.
Volta de Lutero para
Wittenberg
Tendo
aumentado o tumulto, Lutero fechou os olhos ao próprio perigo, e, saindo do seu
esconderijo, partiu para Wittenberg. Foi em vão que o príncipe lhe fez ver o
perigo a que ele se expunha, e lhe mostrou a qualidade do inimigo que tinha no
duque Jorge, por cujos territórios havia de passar. "Uma coisa posso
dizer", escreveu ele, "se as coisas estivessem em Leipzig como estão
em Wittenberg, para ali mesmo me dirigia, ainda que chovesse duques Jorges durante
nove dias, e que cada um deles fosse nove vezes mais feroz do que este.
Portanto direi a Vossa Alteza (apesar de Vossa Altezar saber muito bem), que
vou a Wittenberg sob uma proteção muito mais forte do que a de Vossa
Alteza".
Ao
chegar a Wittenberg em Março de 1522, Lutero começou uma série de sermões, oito
ao todo, sobre os fanáticos de Zwickau, nos quais tratou dos diferentes
assuntos com um tato pouco vulgar. Estes sermões constituem um tesouro, e foram
admiravelmente adaptados à ocasião a que se destinaram. No seu estilo vigoroso
e picante fez-lhes ver o deplorável fim a que um tal excesso de zelo levaria
sem dúvida o povo; disse-lhes que lhes faltava caridade, sem a qual a sua fé de
pouco valia; que sabiam melhor falar das doutrinas que lhes eram pregadas, do que
pô-las em prática; e que não tinham paciência e estavam prontos de mais a
sustentar os seus próprios direitos: "Neste mundo", disse ele,
"não se deve fazer tudo aquilo a que se tem direito, mas antes renunciar o
próprio direito, e considerar, pelo contrário, o que é útil e vantajoso para os
nossos irmãos. Não imagineis que aquilo que 'deve ser' 'há de ser'
forçosamente, como estais fazendo, para que não tenhais de responder por
aqueles que tendes desencaminhado pela vossa liberdade pouco caridosa".
Estes sermões tiveram o efeito desejado. A agitação apaziguou-se,
seguindo-se-lhe o sossego e a tranqüilidade. Os estudados voltaram
pacificamente aos seus estudos e o povo, às suas casas; e o príncipe não pôde
deixar de reconhecer que Lutero tinha feito bem em sair de Wartburgo.
Tradução da Bíblia
Em
seguida continuou a tradução da Bíblia, sendo muito auxiliado na árdua tarefa
pelas revisões críticas de Melanchton. Poucos meses depois o Novo Testamento
estava pronto, e em Setembro de 1522 publicado. Foi recebido pelos seus
compatriotas com muito entusiasmo, e teve de publicar uma segunda edição no
espaço de dois meses, e em dez anos nada menos de cinqüenta e três edições se
tinham publicado só na Alemanha! Então foi adicionado também o Velho
Testamento. O povo alemão tinha agora uma Bíblia completa na sua própria
língua, e isto contribuiu mais para a consolidação e propagação das doutrinas
reformadas do que todos os escritos de Lutero juntos.
A
Reforma estava agora assentada na sua verdadeira base – a Palavra de Deus. Até
aqui falara Lutero. Agora é o próprio Deus que fala ao coração e à consciência
dos homens. A sua Palavra era agora acessível a todos, e a Roma papal tinha
recebido um choque do qual nunca se poderia restabelecer completamente. Pouco
depois foi dirigido ao papa, por um concílio de bispos católicos-romanos, um
memorial sobre o assunto: "O melhor conselho", disseram eles,
"que podemos dar à sua santidade é que devemos empregar todos os esforços
para se evitar a leitura do Evangelho em língua vulgar... O Novo Testamento é
um livro que tem dado mais ocasião a maiores distúrbios, e estes distúrbios têm
quase arruinado a nossa igreja. Na verdade, se prestarmos séria atenção às
Escrituras e as compararmos com o que geralmente se encontra nas nossas igrejas,
verse-á uma grande diferença entre umas e outras; e que a doutrina do
reformador é inteiramente diferente da nossa e em muitos respeitos
diametralmente oposta a ela". Era assim que Roma se julgava a si própria;
e que o poder da Palavra era reconhecido por aqueles que praticamente negavam a
sua autoridade.
Progresso da Reforma
No
entanto, a Reforma continuava a ganhar terreno, e o interesse que o primeiro
ato de Lutero tinha despertado não diminuía com o decorrer do tempo. O povo em
toda a parte escutava a Palavra com prazer, chorando muitas vezes de alegria ao
ouvir as boas-novas. Em Zwickau e Anaberg, as multidões ávidas rodeavam os
púlpitos dos reformadores, e escutavam-nos dias inteiros; e quando Lutero
pregou o seu primeiro sermão em Leipzig aquela grande multidão de gente caiu de
joelhos e bendisse a Deus pela Palavra que seu servo tinha o privilégio de
falar. Os folhetos e os sermões do reformador eram levados de cidade em cidade;
os vendedores ambulantes levavam-nos às aldeias mais distantes, e os navios
transportavam-nos de porto em porto, introduzindo-os em todos os países onde
houvesse homens bastante instruídos para os receber. Três anos depois do começo
da Reforma, houve um viajante que comprou algumas das obras de Lutero em
Jerusalém.
Oposição de Roma
Roma,
como se pode supor, não descansava no caso, e fulminava os reformadores com as
suas maldições numa cólera vã. "Heresia! Heresia!" ouvia-se por toda
a parte, enquanto as excomunhões se multiplicavam e os editos reais se
publicavam em número cada vez maior. Alguns pregadores do Evangelho foram
presos, torturados, queimados, mas isso de nada servia: a Bíblia estava nas
mãos do povo, e a resistência era inútil. As mulheres mais simples estavam
sentadas ao pé das suas rocas, com as suas Bíblias no regaço, e confundiam os
monges que vinham discutir com elas. Tinha-se levantado uma nova ordem de
coisas, mas o poder que tinha produzido estes efeitos não provinham do homem.
Era um poder que até ali tinha forças para esmagar, e era poderoso para
destruir as fortalezas do inimigo.
A
Reforma estava ainda em começo quando rebentou a guerra dos camponeses, que lhe
fez sofrer um grande atraso. Era o seu chefe um fanático chamado Tomás Münzer,
homem que tinha tomado parte notável nos motins de Wittenberg, durante a
reclusão de Lutero ao castelo de Wartburgo. Depois disso estabeleceu-se em
Mulhausen, e empreendeu a sua grande obra (como ele lhe chamava) de derrubar o
"reino pagão" e de exterminar os ímpios.
Revolta dos Camponeses da
Alta Alemanha
Os
camponeses oprimidos ouviram-no com alegria, e correram às armas. Lutero, a
princípio, foi ao encontro deles com a Palavra de Deus e com razões moderadas;
mas quando se insurrecionaram abertamente, então escreveu contra eles, e
chamou-lhes de ladrões e assassinos. As províncias da Alta Alemanha estavam
agora mergulhadas em anarquia e confusão. A plebe, estimulada por um êxito
temporário, e furiosa com a lembrança da injustiça e opressão que tinha
sofrido, precipitava-se para aqui e acolá, queimando e destruindo palácios,
igrejas, conventos, até que por fim foram vencidos em Frankenhaussem pelo
príncipe de Hesse, e totalmente derrotados. O seu ato temerário de rebelião não
lhes serviu de nada, e quando voltaram para as suas casas, viram que com ele
tinham aumentado seus males. Condenar sem distinção todos aqueles que tivessem
tomado a mais insignificante parte no movimento, era agora a política do
partido papal; e daí todos os males provenientes da guerra dos camponeses foram
injustamente atribuídos à influência da obra de Lutero. A Reforma não sofreu
pouco por causa dessa falsa acusação.
Movimento Divergente
Por
essa época apareceram os Anabatistas, assim chamados por sustentarem a doutrina
de que o batismo devia ter lugar por imersão, e que os que tivessem sido
batizados na infância deviam ser novamente batizados.
Os
chefes deste movimento asseveravam que eram eles os verdadeiros reformadores, e
anunciavam que o reino de Cristo estava prestes a manifestar-se. Tinham, porém
alguns excessos: achavam que deveriam ter todas as coisas em comum, e que não
deviam ser obrigados a pagar dízimos nem tributos... Eles aumentavam em número,
e apresentavam uma vida muito rigorosa, assim como uma grande coragem na morte
de mártires, quer seja por meio de fogo ou de água. O movimento continuou a
aumentar, apesar da perseguição, até o martírio dos seus principais chefes.
O Conselho de Spires
Pouco
mais ou menos por este tempo os três mais poderosos príncipes da Europa,
Henrique VIII da Inglaterra, Carlos V da Alemanha e Francisco I da França,
uniram-se com o papa para a supressão dos perturbadores da religião católica e
para se vingarem dos ultrages que tinham sido feitos à "Santa" Sé.
Para esse fim foi convocado em Spires um Conselho de nobres, no ano de 1526, a
que presidiu o príncipe Fernando, irmão do imperador. Foi lida aos príncipes
reunidos uma mensagem imperial ordenando que fosse prontamente cumprido o edito
de Worms contra Lutero. Mas isso não deu o resultado com que os amigos do
papismo tinham tão ardentemente contado; e, em vez de entregarem o reformador à
mercê de Roma, o Conselho submeteu ao imperador os seguintes itens: que eles
fariam todos os esforços para aumentar a glória de Deus e manter uma doutrina
em conformidade com a sua Palavra, e davam graças a Deus por ter feito reviver
no tempo próprio a verdadeira doutrina de justificação; que não permitiriam a
extinção da verdade que Deus lhes tinha revelado ultimamente.
Confiante,
apesar da derrota, o imperador três anos mais tarde reuniu um segundo Conselho
na mesma cidade. Os seus modos eram coléricos e despóticos, mas os nobres que
defendiam a Reforma estavam tranqüilos e resolutos. Naqueles tempos estas
qualidades eram muito necessárias. Ninguém esperava a inflexibilidade dos
nobres, e a presença de um tal espírito entre eles era um novo elemento do
Conselho alemão. Até ali o imperador tinha tido fama de exercer um poder
absoluto, mas ia ter lugar uma crise na história da Reforma, e aquilo por que
lutavam os nobres não tinha sido reconhecido pela política humana. Foi isto que
o imperador não compreendeu.
Origem da Palavra
"Protestante"
Fernando
presidiu novamente a este Conselho e, sentindo que estava iminente uma crise,
recorreu a medidas desesperadas. Usando a autoridade que ele ali representava,
ordenou imperiosamente a submissão dos príncipes alemães ao edito de Worms. A
sua conduta foi mais caracterizada pelo atrevimento do que pela sabedoria, e só
serviu para agravar o sentimento que já existia. Para dar uma saída ao negócio,
publicou-se um decreto resumindo as ordens do imperador, que os fidalgos
católicos assinaram.
Foi
aquele um momento de ansiedade para Lutero e a Reforma, mas o grupo reformador
teve forças para sustentar a luta no Conselho. Sem receio da altivez de
Fernando, e impassíveis às ameaças dos bispos, uniram-se em um grupo e no dia
seguinte levaram seu protesto contra a decisão da assembléia. E foi o começo do
Protestantismo, e do Período de Sardo na História da Igreja.
Proteção
dos Príncipes ao Movimento
A reforma alemã não começou pelas classes mais baixas, como aconteceu na Suíça.
Na Alemanha os príncipes puseram-se à frente, ajudando a causa, e adotando as
opiniões dos reformadores, mas quando os luteranos começaram a sentir
seriamente a necessidade de uma constituição eclesiástica para as igrejas, em
vez de seguirem as instruções da Palavra de Deus, adotaram para seu uso um
sistema de leis e princípios que o príncipe de Hesse coordenou. E assim as
igrejas reformadas tiveram logo uma constituição puramente humana e política.
O bondoso príncipe de Saxônia Frederico, o Sábio, morreu no ano 1525, e o seu
sucessor João, um Luterano valente, deu um grande impulso à obra da Reforma.
Como um meio de reprimir a autoridade do papa, assumiu uma completa jurisdição
em matéria religiosa, demitindo homens incompetentes e preenchendo os lugares
destes com luteranos piedosos e aprovados. Outros príncipes seguiram seu
exemplo, introduzindo na igreja sistemas de governo que eram meramente
organizações humanas, e assim se estabeleceram as primeiras igrejas luteranas.
Sempre que se tomem medidas precipitadas em matérias de importância há de se
encontrar oposição. Até aqui a moderação de Frederico tinha conservado os
partidos católicos e luteranos até certo ponto, porém as medidas enérgicas e
extremas do seu sucessor alarmaram os príncipes católicos, que formaram uma
aliança entre si para reprimir o progresso das doutrinas reformadas nos seus
respectivos territórios. A separação tornou-se irremediável. Uma grande parte
da Saxônia, o antigo distrito de frisões, e as colônias orientais de Alemanha
eram agora protestantes; enquanto que a Áustria, Baviera, e os bispados alemães
do Sul conservaram a velha religião. A guerra civil parecia inevitável, mas os
pormenores desta contenda pertencem mais à história política do que à
eclesiástica, e por isso não nos ocuparemos com eles.
O Imperador Resolve Convocar Outro Conselho
Quanto ao imperador, havia muito que ele tinha na sua idéia reunir um
Conselho com o fim de se certificar, ele próprio, pela boca dos principais
protestantes, quais eram as razões por que eles se separavam da antiga igreja.
O papa, que ainda se lembrava do procedimento dos Conselhos de Worms e Spires,
opôs-se a isso, e aconselhou medidas enérgicas. "As grandes congregações",
dizia ele, "só servem para introduzir opiniões populares. Não é com
decretos de concílios, mas com a ponta da espada que devemos decidir as
controvérsias". Carlos prometeu refletir sobre este conselho, mas,
depois de vacilar por algum tempo entre as duas opiniões, optou pela sua, e
convocou um conselho em Augsburgo. Logo que se conheceram as razões do
imperador para convocar o conselho, os protestantes prepararam uma fórmula de
confissão para ser submetida. Foi escrita por Melanchton, e nela se enumeravam
claramente as principais doutrinas dos reformadores, sendo a matéria fornecida
principalmente por Lutero que leu o documento e deu-lhe a sua aprovação,
dizendo: "Eu nasci para ser um rude polemista; limpo a terra, arranco o
joio, encho os fossos e endireito as estradas. Mas quanto ao edificar, plantar,
semear, regar, embelezar o campo, isso pertence, pela graça de Deus, a Felipe
Melanchton". O documento foi chamado "Confissão de
Augsburgo".
Encontro do Imperador com os Príncipes
No dia 15 de junho de 1530, o imperador entrou em Augsburgo com uma
comitiva importante. Os príncipes protestantes, apeando-se dos seus cavalos,
foram ao seu encontro, e Carlos, com uma amabilidade igual à lealdade deles,
também se apeou e estendeu cordialmente a mão a cada um deles, por sua vez. No
entanto, o legado papal, o cardeal Campeggio, ficou imóvel na sua mula
(parecendo haver entre eles na verdade, alguma afinidade), mas vendo que tinha
cometido um erro, procurou remediá-lo lançando a bênção aos príncipes reunidos.
Quando levantava as mãos para esse fim o imperador e a sua comitiva ficaram de
joelhos, mas os príncipes protestantes conservavam-se de pé. Esta circunstância
não tinha sido prevista, e os do partido do papa ficaram um tanto perplexos com
o incidente. Mais tarde havia de se dizer uma missa na capela de Augsburgo,
para solenizar a abertura do Conselho, e os protestantes ganharam mais uma
vitória recusando-se a assistir a ela. Mas o astuto prelado ainda se não deu
por vencido. O príncipe de Saxônia, como marechal do Império, era obrigado em
tais ocasiões a ir à frente do imperador, de espada na mão, e o cardeal
apresentou a idéia de que Carlos lhe ordenasse que cumprisse com o seu dever na
missa do Espírito Santo, que devia preceder à abertura das seções. O príncipe
concordou em assistir, mas deu a entender ao imperador que era unicamente no
desempenho de um cargo civil. Ao legado estava reservado sofrer mais um
desengano. A elevação da hóstia toda a congregação caiu de joelhos em adoração,
mas o príncipe conservou-se de pé.
Abertura do Conselho
A abertura do conselho teve lugar no dia 20 de junho, e o imperador presidiu a
ela. Imaginava-se que se trataria do assunto de religião antes de qualquer
outro, mas pouco se fez nesse dia; e a leitura da "Apologia" - outro
nome dado à "Confissão" - foi marcada para o dia 24.
A grande esperança dos católicos era que os protestantes não tivessem
oportunidade de expor a sua causa publicamente, e no dia 24 fizeram tudo quanto
estava ao seu alcance - prolongando os outros assuntos do dia - para demorar a
leitura da Confissão até ser tarde demais para isso.
Foi extraordinário o tempo que o cardeal levou a apresentar as suas
credenciais, e a entregar a mensagem do papa. Por seu lado o imperador também
foi muito minucioso a pedir pormenores das devastações dos turcos na Áustria, e
da captura de Rhodes. Assim se gastaram momentos preciosos até quase a hora de
encerrar a sessão. Então fez-se notar que já era tarde demais para a leitura da
Apologia. "Entregai a vossa confissão aos oficiais competentes,"
disse Carlos, "e ficai certos de que responderemos a ela depois de ser
devidamente ponderada".
Mas aqui levantou-se uma certa oposição. Nunca ocorreu a Carlos que a sua
jurisdição não se estendia às consciências dos seus súditos, nem que ele estava
excedendo a sua prerrogativa pelas suas evasivas e artifícios, e não estava
preparado para a resposta que recebeu. "A nossa honra está em perigo",
disseram os príncipes, "e as nossas almas também; somos acusados
publicamente e é publicamente que devemos responder". Que se havia de
fazer? Os príncipes mostraram-se respeitosos, mas também firmes e
intransigentes. "Amanhã", replicou o imperador, "ouvirei
o vosso sumário - não nesta sala, mas na capela do palácio Paladino".
No dia seguinte - dia memorável na história do Cristianismo -, os chefes
protestantes apresentaram-se perante o imperador. Havia duas cópias da
Confissão, uma em latim, outra em alemão. Carlos desejava que se lesse a cópia
latina, porém o príncipe lembrou-lhe que estavam na Alemanha, e não em Roma, e
que, portanto, devia ser permitido talar em alemão. A sua proposta admitiu-se,
e o chanceler Bayer levantou-se do seu lugar e leu a Confissão de um modo
vagaroso e claro, sendo ouvido a uma distância considerável. Esta leitura levou
pouco mais ou menos duas horas, e Pontano, um reformador notável, entregou as
duas cópias da Confissão ao secretário do imperador, dizendo: "Como a
graça de Deus, que há de defender a sua Causa, esta Confissão há de triunfar
contra as portas do Inferno".
Resultado da Leitura da Apologia
O efeito que a leitura da Confissão produziu no público foi o mais animador
possível. A extrema moderação dos protestantes era a admiração de muitos; e,
diz Sekendorf: "Muitas pessoas sumamente ilustradas fizeram um juízo
muito favorável do que tinham ouvido, e declararam que não teriam deixado de
ouvi-lo nem por uma grande soma". "Tudo quanto os luteranos
disseram é a verdade", disse o bispo de Augsburgo, "não o
podemos negar". E testemunhos destes havia muitos. O duque de Baviera
disse ao Dr. Eck, o maior campeão de Roma na Alemanha: "O doutor
tinha-me dado uma idéia muito diferente desta doutrina e deste negócio, mas, no
fim de contas, pode porventura contradizer com razões boas a Confissão feita pelo
príncipe e seus amigos?" - "Não pelas Escrituras",
replicou Eck, "mas pelos escritos dos padres da Igreja e dos cânones
dos concílios podemos". "Então já entendo", respondeu
o duque, censurando, "os luteranos tiram a sua doutrina das Escrituras
e nós achamos a nossa fora das Escrituras".
Ultimos
Anos de Lutero
Porém a hora de Lutero ainda não tinha chegado. O Senhor tinha outra obra para
o seu querido servo: e durante mais de quinze anos o doutor de Wittenberg
prosseguiu nos seus trabalhos, desenvolvendo, com as suas orações fervorosas,
os seus sábios conselhos, a sua generosa simpatia, a sua ardente eloqüência, e
a sua hábil pena a obra que tinha tido o privilégio de começar. Os seus últimos
dias foram tranqüilos e cheios de paz; e a sua vida doméstica não era a menor
das suas últimas alegrias. Foi abençoado com uma fiel esposa, sua companheira e
a sua consolação em muitos desgostos e dificuldades, e os seus filhos eram o
orgulho de seu coração. Temos notícias de uma anedota que lança nota brilhante
sobre Lutero no meio da sua família. Ao entrar inesperadamente um dia no seu
quarto, um dos amigos encontrou-o com um dos seus filhinhos escarranchado nas
suas pernas, e rindo desmedidamente por o pai o estar fazendo
"galopear". Lutero pediu desculpa ao amigo, por não se levantar para
o saudar, dizendo: "O meu pequeno vai para Roma levar um recado do seu
pai ao papa, e eu não podia interromper a sua jornada". Como tudo isto
é belo, quando pensamos que procediam do homem que tinha abalado tronos e dado
de pensar ao mundo inteiro!
Morte de Lutero
Uma disputa se tinha levantado entre os condes de Mansfield, e pediram-lhe o
seu arbítrio. Isso fê-lo comparecer à sua terra natal. "Nasci e fui
batizado em Eisleben", disse Lutero a um amigo que o acompanhava,
"seria curioso se eu ficasse e morresse aqui". E assim
aconteceu. Pela tarde queixou-se de uma opressão e dor no peito, e, embora se
sentisse aliviado com umas fomentações quentes, a opressão voltou mais tarde.
Às nove horas encostou-se e dormiu até as dez. Ao acordar foi para o seu
quarto, e, depois de dar as boas-noites aos que o rodeavam, acrescentou: "Orem
pela causa de Deus". As dores continuavam a aumentar e, entre uma e
duas horas da madrugada, levantou-se e foi para o seu escritório sem ajuda de
ninguém. Ele sabia que o seu fim estava próximo, e repetiu amiúde estas
palavras: "Oh! meu Deus! Nas tuas mãos ponho o meu espírito!"
Entretanto muitos tinham tido conhecimento do seu estado, e em breve se viu
rodeado de seus três filhos, vários amigos, o conde e a condessa Albert, e dois
médicos. Então começou a transpirar, o que lhes deu algumas esperanças, mas ele
disse: "É um suor frio, o precursor da morte; em breve darei o último
suspiro". Então pôs-se a orar, e concluindo repetiu três vezes: "Nas
tuas mãos entrego o meu espírito: Tu me remiste, ó Senhor Deus da verdade!"
Em seguida Jonas perguntou-lhe: "Querido pai, confessas que Jesus
Cristo é o Filho de Deus, e nosso Salvador e Redentor?" Lutero
respondeu audível e claramente: "Confesso". Foi esta a sua
última palavra, e assim, de madrugada, rendeu o espírito a Deus. O seu corpo
foi removido para Wittenberg no dia 22 de Fevereiro, e Pomerano falou à imensa
multidão que, no dia seguinte, se reuniu para presenciar o seu funeral.
Melanchton em seguida fez uma oração fúnebre. Mas, para honra dos dois
oradores, notou-se que os seus sentimentos eram mais notáveis do que a sua
oratória, e as suas piedosas tentativas para consolar a tristeza dos outros não
eram mais do que uma demonstração do seu próprio pesar.
Ha um nome que não pode ser jamais esquecido: Jeronimo Savanorola, que foi um dos grandes reformadores que, em tempo hábil, ainda falaremos dele e de sua contribuição. Imagem abaixo.
Conheça as 95 teses de Lutero, faíscas da Reforma Protestante
Há 500 anos, o ex-frade alemão Martinho Lutero cunhou 95 teses que provocaram um racha no cristianismo –foi o início da Reforma Protestante.
Entre os alvos das críticas, estavam o papa e, principalmente, o "mercado do perdão divino" que vigorava na época.
Com a ajuda do professor de ciências da religião Carlos Caldas, da PUC-MG, e do professor de história moderna Rui Luis Rodrigues, da Unicamp, a Folha destacou 5 das 95 teses. Abaixo, leia-as na íntegra.
Tese 1
"Nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo, ao dizer "arrependei-vos", intencionou que toda a vida dos cristãos seja de arrependimento"
Rui Rodrigues diz que "Lutero ressaltava a penitência como atitude", isto é, os cristãos deveriam se sentir arrependidos por toda a vida, mesmo se um padre o perdoasse.
De acordo com Carlos Caldas, o discurso oficial da Igreja Católica, no início do século 16, era de que o perdão de Deus poderia ser conquistado com a compra de indulgências, uma espécie de documento. É este o principal alvo das críticas.
Tese 6
"O papa não tem poder para remir qualquer culpa, exceto para declarar e garantir sua remissão por Deus; ou, quando muito, remindo casos reservados para si mesmo; neles, sendo desprezado seu poder, a culpa certamente permanecerá."
Para Rodrigues, essa tese revela que o ex-frade estava mais interessado em esclarecer a doutrina cristã do que instigar um cisma na Igreja Católica.
De acordo com o historiador, essa percepção não era fundamentalmente diferente do que se diz na teologia católica. "Lutero não ataca a autoridade do papa para perdoar pecados, mas afirma que [os sacerdotes] podem apenas comunicar o perdão concedido por Deus", diz.
Tese 27
"Eles pregam que a alma sai do purgatório assim que se ouve o tilintar da moeda ao cair no cofre das ofertas"
Trata-se de uma crítica mais direta ao comércio de indulgências. É uma alfinetada à frase atribuída ao frade Johann Tetzel, grande comissário para indulgências na Alemanha da época: "Tão logo uma moeda na caixa cai, a alma do purgatório sai".
A ideia criticada por Lutero era de que tanto as almas dos vivos quantos as dos mortos poderiam ser salvas com a compra do documento. "Quanto maior o valor pago, mais gerações anteriores de sua família são liberadas do purgatório", diz Caldas.
Tese 50
"Os cristãos devem aprender que, se o papa estivesse inteirado do que fazem os pregadores de indulgências, ele preferiria que a Basílica de São Pedro fosse reduzida a cinzas a ser construída com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas".
Com essa tese, o papa é "blindado". Para Caldas, é uma estratégia política de Lutero, disfarçada na forma de cortesia, para "não bater de frente" com o Santo Padre.
De acordo com Rodrigues, Lutero foi cauteloso. O professor cita outro exemplo da ponderação, a tese 38, na qual o ex-frade diz que "não se deve desprezar o perdão e a distribuição [do breve] pelo papa, visto que o perdão papal consiste numa declaração do perdão divino".
Tese 62
"O verdadeiro tesouro da igreja é o santo evangelho da glória e da graça de Deus"
Para Caldas, essa tese sintetiza as chamadas "Cinco Solas", frases cunhadas pelo ex-frade e que se tornaram símbolo da Reforma Protestante: "Somente a Escritura, somente Cristo, somente a graça, somente a fé, glória somente a de Deus".
Para Lutero, a Igreja Católica colocava muitos intermediários entre os homens e Deus. As "Solas" eram uma forma simples de transmitir a ideia de que todos poderiam ter acesso direto a Deus.
São um resumo de suas inquietações. Era o debate teológico da salvação que o perturbava: como alcançá-la? Em meio a tantas "fontes" de fé, o escopo deveria ser diminuído. A resposta, para o ex-frade, era que "menos é mais". Daí a palavra latina "sola", que significa "somente".
Abaixo, o documento de Lutero que compõe "As 95 Teses e a Essência da Igreja" (Editora Vida, 160 págs., R$ 20,90), com tradução de Carlos Caldas
1. Nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo ao dizer "arrependei-vos" intencionou que toda a vida dos cristãos seja de arrependimento.
2. Essa palavra não pode ser entendida como penitência sacramental, que é a confissão e satisfação realizadas sob o ministério dos sacerdotes.
3. Mas isso não se refere apenas à penitência interior; isto é, tal penitência interior é inútil, a não ser que externamente produza mortificações na carne.
4. O arrependimento assim continua, tanto quanto o ódio a si mesmo -isto é, o verdadeiro arrependimento interior- ontinua, até nossa entrada no reino dos céus.
5. O papa não tem nem vontade nem poder para remir quaisquer penitências, exceto as que ele impôs por autoridade própria ou por autoridade canônica.
6. O papa não tem poder para remir qualquer culpa, exceto para declarar e garantir sua remissão por Deus; ou, quando muito, remindo casos reservados para si mesmo; neles, sendo desprezado seu poder, a culpa certamente permanecerá.
7. Deus jamais remirá a culpa de homem algum sem que este se sujeite, com total humildade, à autoridade de seu representante, o sacerdote.
8. Os cânones penitenciais são impostos apenas aos vivos, e nenhum peso deve ser imposto aos moribundos.
9. Por isso, o Espírito Santo, atuando no papa, nos faz o bem em que, em seus decretos, sempre abre exceção quanto ao artigo da morte e da necessidade.
10. Agem de modo errado e ignorante os sacerdotes que, no caso dos moribundos, reservam-lhes penalidades canônicas para o purgatório.
11. O joio da transformação da penalidade canônica em penalidade de purgatório foi certamente semeado enquanto os bispos dormiam.
12. Antigamente, as penalidades canônicas eram impostas antes da absolvição, não depois -como teste de verdadeira contrição.
13. Os moribundos pagam todas as suas penalidades pela morte, e já estão mortos segundo as leis canônicas, e estão por direito desobrigados delas.
14. A sapiência ou caridade imperfeita do moribundo trazem necessariamente grande temor, e, quanto menores forem, maior o temor que produzirão.
15. Esse medo e horror são suficientes por si mesmos, para não dizer nada de outras coisas, para constituir as dores do purgatório, pois está muito próximo do horror provocado pelo desespero.
16. O inferno, o purgatório e o céu são tão diferentes uns dos outros quanto o desespero, o quase desespero e a paz mental são diferentes uns dos outros.
17. Com as almas no purgatório parece necessário que, enquanto o horror diminui, a caridade aumente.
18. Parece que não foi provado, nem por argumentos nem por qualquer texto bíblico, que as almas do purgatório estejam fora do estado de mérito ou do crescimento em caridade.
19. Ao que parece, ainda não se provou que as almas do purgatório estão seguras e confiantes quanto à própria bem-aventurança, todas elas pelo menos, ainda que não estejamos seguros disso.
20. Portanto, quando o papa fala de indulgência plenária de todas as culpas, não fala de todas, mas apenas das que ele mesmo impôs.
21. Dessa maneira estão errados os pregadores de indulgências que dizem que, pelas indulgências do papa, o homem perdido está salvo de todo castigo.
22. Pois o papa, de acordo com os cânones eclesiásticos, não dispensa as almas do purgatório de pena nenhuma que deveria ter sido paga em vida.
23. Se qualquer indulgência plenária de todas as penalidades puder ser concedida a qualquer um, sem dúvida ela será concedida só aos mais aperfeiçoados - que são muito poucos.
24. Daí que a maior parte do povo é enganada com essas promessas indiscriminadas e impressionantes da remissão de todas as penas.
25. O poder do papa sobre o purgatório, de modo geral, também o detém cada bispo em sua diocese e cada padre em sua paróquia, em particular.
26. O papa age com muito acerto ao conceder remissão às almas não pelo poder das chaves (sem nenhuma serventia no caso), mas por intermédio da intercessão.
27. Eles pregam que a alma sai do purgatório assim que se ouve o tilintar da moeda ao cair no cofre das ofertas.
28. O certo é que, ao tilintar o dinheiro na caixa, a avareza e o lucro podem aumentar, mas a intercessão da igreja depende só da vontade de Deus.
29. E quem sabe se todas as almas no purgatório desejam ser libertas dele, conforme a história contada pelos santos Severino e Pascoal.
30. Nenhum homem está seguro da realidade da própria contrição, muito menos de receber perdão completo por todos os seus pecados.
31. Raro é o verdadeiro penitente, tão raro é quem verdadeiramente obtém o perdão -isto é, muito raro.
32. Os que acreditam que por intermédio de cartas de perdão podem ter certeza da própria salvação serão condenados eternamente junto com os seus mestres.
33. Devemos tomar cuidado especial com quem diz que os perdões do papa são o mais inestimável dom divino pelo qual o homem é reconciliado com Deus.
34. Pois a graça concedida por esses perdões diz respeito apenas aos castigos da satisfação sacramental, de indicação humana.
35. Não prega nenhuma doutrina cristã quem ensina a desnecessidade da contrição para quem retira as almas do purgatório ou compra documentos de confissão.
36. Todo cristão verdadeiramente compungido tem por direito a remissão plenária do castigo e da culpa, mesmo que não disponha de indulgências de perdão.
37. Todo cristão verdadeiro, vivo ou morto, tem parte em todos os benefícios de Cristo e da igreja, que lhe foram dados por Deus, mesmo sem cartas de perdão.
38. Todavia, o perdão concedido pelo papa não deve de modo algum ser desprezado, pois, como já declarei, trata- -se de uma declaração do perdão divino.
39. É algo muito difícil, mesmo para os teólogos mais eruditos, exaltar ao mesmo tempo o amplo efeito do perdão e a necessidade de verdadeiro arrependimento aos olhos do povo.
40. O verdadeiro arrependimento busca e ama o castigo, enquanto a abundância de perdão causa relaxamento, e leva os homens a odiarem-no, ou pelo menos lhes dá motivo para tanto.
41. O perdão apostólico deve ser proclamado com cautela, a não ser que o povo seja levado a imaginar com falsidade que o perdão é melhor que boas obras de caridade.
42. Os cristãos devem aprender que não está na mente do papa que a compra de perdão deva de algum modo ser comparada às obras de misericórdia.
43. Os cristãos devem aprender que quem ajuda a um pobre ou empresta dinheiro a um necessitado faz melhor que comprar indulgências.
44. Porque, por uma obra de caridade, a caridade aumenta, e o homem se torna melhor, enquanto comprando indulgências ele não se torna melhor, apenas livre do castigo.
45. Os cristãos devem aprender que quem vê o necessitado e o ignora e compra indulgências não adquire para si as indulgências do papa, mas a ira de Deus.
46. Os cristãos devem aprender que, a não ser que tenham riquezas supérfluas, devem gastar seu dinheiro no sustento da família, e de modo algum desperdiçá-lo comprando indulgências.
47. Os cristãos devem aprender que, conquanto sejam livres para comprar indulgências, não há nenhum mandamento para que o façam.
48. Os cristãos devem aprender que o papa, ao conceder indulgências, precisa e deseja mais orações piedosas que de pagamentos em dinheiro.
49. Os cristãos devem aprender que o perdão do papa é útil, caso não depositem nele sua confiança, mas é inútil se, ao comprarem indulgências, perderem o temor a Deus.
50. Os cristãos devem aprender que, se o papa estivesse inteirado do que fazem os pregadores de indulgências, ele preferiria que a Basílica de São Pedro fosse reduzida a cinzas a ser construída com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas.
51. Os cristãos devem aprender que, se fosse seu dever, seria desejo do papa até mesmo vender a Basílica de São Pedro e dar do próprio dinheiro a todas as pessoas que foram extorquidas pelos pregadores de indulgências.
52. Vã é a esperança de salvação por intermédio de cartas de indulgência, mesmo que um enviado do papa -ou o papa em pessoa- entregasse a própria alma como garantia.
53. São inimigos de Cristo e do papa os que, para promover a pregação das indulgências, condenam a Palavra de Deus ao silêncio nas igrejas.
54. Um erro é cometido quando a Palavra de Deus recebe menos tempo que a divulgação das indulgências no mesmo sermão.
55. O desejo do papa é que, se as indulgências - assunto de pequena importância - são celebradas com sinos, procissões e cerimônias, o evangelho, que é de importância muito maior, deve ser pregado com centenas de sinos, centenas de procissões e cerimônias.
56. Os tesouros da igreja, dos quais o papa concede as indulgências, não são devidamente conhecidos entre o povo de Cristo.
57. Está claro que não se trata de bens temporais, pois não são prontamente distribuídos, mas apenas acumulados, por muitos pregadores.
58. Nem são eles méritos de Cristo e dos santos, pois estes, independentemente do papa, estão sempre concedendo graça ao homem interior, e a cruz, a morte e o inferno ao homem exterior.
59. São Lourenço disse que os pobres são os tesouros da igreja, mas ele falou de acordo com o uso das palavras no seu tempo.
60. Não nos precipitamos quando falamos que as chaves da igreja, concedidas pelos méritos de Cristo, são este tesouro.
61. Pois está claro que o poder do papa é suficiente para a remissão de penas em alguns casos particulares.
62. O verdadeiro tesouro da igreja é o santo evangelho da glória e da graça de Deus.
63. Mas esse tesouro tem sido detestado, porque faz dos primeiros os últimos.
64. Enquanto o tesouro das indulgências é mais aceitável, pois faz dos últimos os primeiros.
65. Por isso os tesouros do evangelho são redes nas quais antigamente se apanhavam homens ricos.
66. Os tesouros das indulgências são redes, com as quais atualmente se apanham as riquezas humanas.
67. As indulgências, que os pregadores orgulhosamente proclamam como as maiores graças, são assim consideradas porque lhes servem de promoção de lucro.
68. Mas elas não podem nem de longe ser comparadas à graça de Deus e à piedade da cruz.
69. Bispos e padres são obrigados a receber com toda a reverência os comissários das indulgências apostólicas.
70. Mas têm que ver e ouvir com toda a atenção para que esses homens não preguem os próprios devaneios em lugar das ordens dadas pelo papa.
71. Quem fala contra a verdade da indulgência apostólica é anátema e maldito.
72. Por outro lado, que seja bendito quem age contra a licenciosidade dos pregadores de indulgências.
73. Como o papa com justiça troveja contra quem usa qualquer tipo de maquinação para o crime do tráfico de indulgências.
74. Muito maior é sua intenção de trovejar contra os que, sob pretexto de indulgência, prejudicam a santa caridade e a verdade.
75. Pensar que as indulgências papais têm poder tal que poderiam absolver um homem mesmo que -por uma impossibilidade- ele tivesse violado a Mãe de Deus, é loucura.
76. Afirmamos, ao contrário, que as indulgências papais não podem retirar o menor dos pecados veniais no que concerne à culpa deles.
77. Dizer que se São Pedro fosse o papa ele não poderia conceder graças maiores é uma blasfêmia contra São Pedro e contra o papa.
78. Afirmamos, ao contrário, que ele e qualquer outro papa não dispõem de graça maior para conceder, a não o ser o evangelho, poderes, dons de cura etc. (1Coríntios 12.9).
79. Dizer que a cruz colocada entre as insígnias das armas papais tem poder igual ao da cruz de Cristo é blasfêmia.
80. Bispos, padres e teólogos que permitem a difusão desses discursos entre o povo prestarão contas disso.
81. A licença para pregar indulgências não torna fácil nem para os mais eruditos proteger a honra do papa contra calúnias ou, em todo caso, os questionamentos contundentes da parte dos leigos.
82. Por exemplo: Por que o papa não esvazia o purgatório motivado por caridade santa e pela suprema necessidade das almas -esta é a mais justa de todas as razões- se ele redime um número infinito de almas por causa de dinheiro que será gasto na construção de uma basílica - sendo esta uma razão muito pequena?
83. Outra, por que as missas fúnebres e as missas de aniversário de falecimento continuam, e por que o papa não devolve, ou permite a retirada dos fundos adquiridos para esse propósito, considerando-se o erro de orar por quem já está redimido?
84. Outra, o que é essa nova bondade de Deus e do papa na qual, por causa de dinheiro, eles permitem que um ímpio e inimigo de Deus redima a alma piedosa que ame a Deus, mas eles não redimem a mesma alma piedosa e amada por pura gratuidade, por causa da própria necessidade desta?
85. Outra, por que as leis canônicas penitenciais, há muito efetivamente abolidas e mortas em si mesmas e não usadas, ainda são resgatadas com dinheiro, pela concessão de indulgências, como se fossem cheias de vida?
86. Outra, por que o papa, cujas riquezas são maiores que a do mais rico entre os ricos, não construiu a Basílica de São Pedro com seu dinheiro, em vez de construí-la com o dinheiro dos cristãos pobres? 87. Outra, que perdão o papa concede a quem, por meio da contrição perfeita, tem direito a pleno perdão?
88. Outra, que bem maior a igreja receberia do papa se ele concedesse esse perdão, centenas de vezes por dia, a todos os fiéis, em lugar de apenas uma vez, como ele faz agora?
89. Considerando que o papa busca por suas indulgências a salvação das almas, e não dinheiro, por que ele suspendeu as indulgências e perdões concedidos no passado, sendo eles igualmente eficazes?
90. Reprimir esses escrúpulos e argumentos do povo pela força, não os resolver com argumentos, significa expor a igreja e o papa ao ridículo de seus inimigos, e tornar os cristãos homens infelizes.
91. Se as indulgências fossem pregadas de acordo com o espí- rito e a mentalidade do papa, todas essas questões seriam resolvidas em paz; na verdade, nem existiriam.
92. Fora com os profetas que dizem ao povo de Cristo "Paz, paz", quando não há paz.
93. Benditos sejam os profetas que dizem ao povo de Cristo "A cruz, a cruz", quando não há cruz.
94. Os cristãos devem se esforçar em seguir Cristo, seu líder em meio a dores, morte e provações do inferno.
95. E assim confiar que entrarão nos céus mediante muitas tribulações em vez de confiar em promessas de segurança de paz.
A História do Cristianismo - Dos Apóstolos do Senhor Jesus Cristo ao Século XX, A. Knight & W. Anglin, CPAD
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