Pregações bizarras: a traumatizante mensagem "Traumas de um esquecido" de Adeildo Costa
De todas as pregações que já ouvi, essa é sem dúvida, a mais absurda de todas. Nunca vi tantas invencionices, distorções da Bíblia e atentados à língua portuguesa num só discurso. E lá estavam os participantes dos Gideões ouvindo a gloriosa mensagem intitulada "Traumas de um esquecido" do eloquente pregador Adeildo Costa. Para os interessados, segue o vídeo:
Atentados contra a língua portuguesa
O pregador começa a mensagem querendo redefinir o significado da palavra "descompensação", que seria um dos traumas de um esquecido. Segundo ele "descompensação" significa retirar de alguém aquilo que ele recebeu de Deus por herança. Busquei tal substantivo na minha edição eletrônica do Aurélio e não a encontrei. Tive sorte com o Houaiss, mas o sentido é totalmente diverso:
Descompensação:
1- Rubrica: patologia, psicologia.
Incapacidade de o organismo restabelecer o equilíbrio físico (esp. cardíaco) ou mental alterado por um problema estrutural ou funcional
2- Derivação: por extensão de sentido. Comportamento inusitado, esp. após tensão nervosa
Tenho a impressão que ele tinha em mente uma outra palavra, mas veio "descompensação" e ele usou. Não seria melhor utilizar "usurpação", "roubo", "apropriação" ou "expropriação"?
Mais à frente, tal como um filologista, ele fala sobre uma doença: "a descongelação da vida eterna, quando o fruto da vida foi retirado. O corpo se define em enfermidade".
Meu Deus! Descongelação significa "ato ou efeito de descongelar-se; descongelamento, degelo"(Houaiss). Daria tudo, neste momento, para perguntar a um patologista se ele já leu sobre esse tipo de doença na literatura médica. Estou até agora perplexo, procurando entender o que significa a "descongelação da vida eterna". A eternidade é uma pedra de gelo?
Nota-se também que na mesma frase ele diz que o "corpo se define em enfermidade". Aqui fica claro que ele queria falar "definha em enfermidade", mas, por uma associação infeliz, disse "define".
Adeildo também diz que o tanque de Betesda foi um "subterfúgio", um porta secundária que Deus criou para o deficientes. Ora, "subterfúgio" é uma palavra negativa que significa "manobra ou pretexto para evitar dificuldades; pretexto, evasiva; ardil para se conseguir algo; estratagema(Houaiss) Quis o pregador dizer que Deus, o Ser Perfeito, usou de subterfúgio? Por um pouco ele não blasfemou contra Deus.
Por favor, não venham me censurar por ser muito rigoroso, afinal de contas todo mundo erra o português de vez em quando. Concordo, todos nós erramos, mas esse pregador parece ter prazer em tentar criar palavras novas, dando a aparência de que é culto. E claramente tenta impressionar a massa ignorante com uma falsa verbosidade.
Estórias da terra do nunca
Deixando a violência cometida contra a língua maternal, vejamos se ele foi bem sucedido no conteúdo bíblico de sua pregação. Já quero adiantar que, se você quiser ouvir essa pregação, é melhor se segurar para não cair. Nunca vi um pregador com uma imaginação tão fértil.
Logo no início pregação, Adeildo nos trás uma revelação bombástica sobre a vida de Samuel. Ele diz que o profeta, juiz e sacerdote passou a sofrer de depressão num estágio avançado de idade.
Aos 30 anos Samuel estava no apogeu de sua glória. Aos 45 anos, toda mãe queria por o nome de Samuel em seu filho, tamanha era a popularidade do profeta. Dos 56 aos 60 anos, Samuel não oferecia mais três sacrifícios ao dia, apenas um pois estava velho. aos 69 anos passou a sofrer críticas da população, porque atrasava os sacrifícios em razão de sua lentidão. Sua habilidade não era mais a mesma. Ele passou a ouvir, por seu filhos, Abias e Joel, que a sua fama não era boa. Samuel então entou num estágio de depressão, se isolou, não queria mais pregar, cantar e ler a Biblia. Finalmente desistiu de seu ministério e entregou suas credenciais de profeta, juiz e sacerdote.
Pergunto: que fonte o ilustre pregador utilizou para nos trazer essa grande revelação do conflito existencial de Samuel? Com certeza Adeildo trouxe tal conteúdo diretamente de sua fértil imaginação. Não conheço nada na literatura bíblica ou extra-bíblica que apóie esse conto.
É certo que "sucedeu que, tendo Samuel envelhecido, constituiu seus filhos por juízes sobre Israel." (I Samuel 8:1). Isso não implica que Samuel desistiu de seu ministério. Com certeza foi uma atitude sensata de sua parte. Ele já estava velho. Não tinha o direito de se "aposentar"? Então todo aposentado sofre de depressão? Apesar do enfraquecimento do corpo, o vigor espiritual e a comunhão íntima com Deus foram virtudes que acompanharam Samuel até o último minuto. Onde na Bíblia poderemos encontrar um Samuel desanimado, fechado no quarto do isolamento, tendo de tomar Gardenal? Só na cabeça desse pregador.
Logo em seguida Adeildo praticamente declara que Ló tornou-se um alcólatra depois que fugiu de Sodoma, indo habitar numa caverna. Ele refugiu-se no álcool para esquecer os traumas e decepções pessoais. Essa tese é muito discutível, até mesmo porque a Bíblia diz que foram suas filhas que lhe deram de beber para que pudessem engravidar dele e assim suscitar descendência (Gênesis 9:31 a 36). Além disso o vinho era uma bebida muito comum à mesa naquela época.
Complementando a postagem, vamos finalizar a análise da mensagem "Traumas de um esquecido", de Adeildo Costa. Mesmo diante de um início ruim, eu ainda tinha esperança de que o pregador iria se recuperar no decurso da mensagem. Mas em pouco tempo o meu otimismo transformou-se em espanto diante da estratégia do orador de exarcebar o drama dos personagens históricos, através da revelação de "fatos" que a Bíblia ou a História jamais insinuou.
O suborno da mulher do fluxo de sangue
Sobre a cura da mulher que padecia de um fluxo de sangue (Marcos 5:25-34), o pregador afirmou que a mesma tinha de pagar um suborno a Caifás para que não fosse isolada por causa de sua impureza ritual. Adeildo diz que, tão logo terminou o dinheiro, o líder religioso passou a persegui-la. Ora o texto deixa bem claro que ela tinha dispendido suas economias com os médicos. Por que incluir um crime de extorsão na história? Fica mais emocionante, né?
A maldição dos deficientes físicos
Mas o meu espírito ficou tremendamente consternado quando o paralítico do Tanque de Betesda veio à tona, o caso emblemático de um homem esquecido por todos em sua miséria.
Conforme falei na postagem anterior, Adeildo diz que o Tanque de Betesda era um subterfúgio(?) de Deus, uma porta secundária para aqueles que nasciam com alguma deficiência física. O pregador então passa a descrever as "brechas da lei" relativas à questão da deficiência física. Ei-las:
Primeira brecha: "Se filho nascesse deficiente, a mãe poderia amamentá-lo até os 6 anos de idade. Após esse período, deveria levá-lo ao Tanque de Betesda e o abandoná-lo lá para sempre."
Segunda brecha: "Famílias com crianças deficientes só podiam ser visitadas por parentes na quinta-feira."
Terceira brecha: "Crianças enfermas eram consideradas "anátema". Nesse caso a criança não tinha direito de receber o nome dos pais, ou seja, ficava sem nome."
Quarta brecha: "Uma vez abandonada no tanque, a criança só podia ser alimentada por viúvas."
O orador vai mais longe na dramatização e diz ( inspirado não sei em qual literatura ) que com quatro anos de idade, os pais da criança já começavam a dizer "não vejo a hora de tirar essa aberração de dentro de casa". Acrescentou também que caso a criança perguntasse alguma coisa o pai deveria dizer-lhe: "conjuro-te anátema". Segundo Adeildo, os pais da criança deficiente também costumavam dizer: "estou contando os dias para arrancar essa maldição de dentro de casa" ou "você é uma pedra de tropeço na minha família", e também: "meus parentes deixaram de me visitar porque você é uma aberração."
Em resumo, segundo Adeildo o paralítico do Tanque de Betesda estava lá desde os seis anos de idade por causa de sua deficiência. Tinha sido abandonado naquele lugar por causa da sua condição de maldito.
É cristalina aqui a ignorância bíblica e extra-bíblica do pregador quanto ao tratamento que era dado aos deficientes, principalmente na economia veterotestamentária.
É cristalina aqui a ignorância bíblica e extra-bíblica do pregador quanto ao tratamento que era dado aos deficientes, principalmente na economia veterotestamentária.
Refutação da tese Adeildeana
A literatura talmúdica e bíblica proibiu aos judeus amaldiçoar os parentes e deficientes. Vejamos o trecho da Enciclopédia Judaica, Volume 4, página 752, que tenho aqui na minha estante:
Maldição
De acordo com o Talmud, mesmo uma maldição não merecida tem eficácia, e a maldição desnecessária cairá sobre aquele que a pronunciou. As proibições bíblicas de amaldiçoar elaboradas na "halakah" englobavam 1) a maldição contra Deus; 2) a maldição de parentes (Ex 21:17; Lev. 20:9; Sanh 7:8). As proibições se aplicam aos prosélitos contra seus parentes não-convertidos, (Maim. Yad; Mamrim 5:11). 3) A maldição contra juízes e chefes do povo; 4) A proibição bíblica de amaldiçoar o surdo (Lev. 19:14) foi interpretada para incluir o pobre ou qualquer aleijado ou mutilado.
Ora, uma mãe que amaldiçoasse ou desprezasse um filho deficiente estararia cometendo dois pecados simultaneamente: o de amaldiçoar um deficiente e o de amaldiçoar um parente. Então, todas essas palavras que Adeildo colocou na boca dessa mãe fictícia, com certeza não seriam proferidas por um mãe decente que respeitasse a Lei e as tradições rabínicas. Parece que ele tenta transportar para a cultura judaica o costume espartano de matar crianças que nascessem com deficiências (Ver o filme 300).
Vale a pena reproduzir Levítico 19:14 aqui: "Não amaldiçoarás ao surdo, nem porás tropeço diante do cego; mas temerás o teu Deus. Eu sou o SENHOR.
E outra vez em Levitico 21:18-23:
Pois nenhum homem em quem houver alguma deformidade se chegará; como homem cego, ou coxo, ou de nariz chato, ou de membros demasiadamente compridos, Ou homem que tiver quebrado o pé, ou a mão quebrada,Ou corcunda, ou anão, ou que tiver defeito no olho, ou sarna, ou impigem, ou que tiver testículo mutilado.Nenhum homem da descendência de Arão, o sacerdote, em quem houver alguma deformidade, se chegará para oferecer as ofertas queimadas do SENHOR; defeito nele há; não se chegará para oferecer o pão do seu Deus. Ele comerá do pão do seu Deus, tanto do santíssimo como do santo. Porém até ao véu não entrará, nem se chegará ao altar, porquanto defeito há nele, para que não profane os meus santuários; porque eu sou o SENHOR que os santifico -
Observem que, de acordo com o trecho acima, os deficientes só não podiam ser sacerdotes, mas podiam auxiliar no serviço do santuário de tal forma que podiam "comer do pão de seu Deus, tanto do santíssimo como do santo".
Conforme se percebe, a Lei de Moisés acolhia bem os deficientes, mas o pregador dos Gideões quis transformá-los em malditos, anátemas, pedras de tropeço. Meus Deus! Quanto besteirol!
Com certeza essa estória de que a mãe abandonava o filho no Tanque de Betesda ao seis anos também não tem amparo bíblico nem histórico. Certamente tal mãe desnaturada seria responsabilizada por esse crime.
Na verdade, toda essa estória do Tanque de Betesda faz parte de uma estratégia de entreter o povo com contos inventados, um modo de conferir maior intensidade à dramaticidade do espetáculo teatral. E o povo adora!
Na verdade, toda essa estória do Tanque de Betesda faz parte de uma estratégia de entreter o povo com contos inventados, um modo de conferir maior intensidade à dramaticidade do espetáculo teatral. E o povo adora!
Terminamos aqui.
Cristiano Santana e Wáldson Lima
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