
TEXTO ÁUREO
“Como esta escrito: Não há um justo nem um
sequer.” ( Rm 3.10 )
VERDADE PRÁTICA
O pecado manchou toda a raça humana e
somente o sangue de Cristo é suficiente para purifica-la.
LEITURA BÍBLICA
Rm. 18-20,25-27: 2.1,17-21
INTRODUÇÃO
A JUSTIÇA DE DEUS É NECESSÁRIA
Esta primeira subdivisão principal da Epístola aos Romanos é
básica para o desenvolvimento do tema central de Paulo. Os homens não têm o
direito de reivindicar a graça divina; toda a raça de homens incrédulos existe
sob a ira de Deus — todos os homens, em geral, porque eles se afastaram do
Criador em direção à criatura, e se tornaram moralmente depravados; os judeus
em especial, porque eles desobedeceram à maior revelação de Deus na lei. “Não
há um justo, nem um sequer” (3.10). A conseqüência é que toda boca esteja
fechada e todo o mundo seja condenável diante de Deus (3.19-20).
“O objetivo de Paulo é mostrar que toda a humanidade é
moralmente falida, incapaz de reivindicar um veredicto favorável no tribunal de
Deus, e está desesperadamente necessitada da sua misericórdia e do seu perdão”.
1. A Depravação Humana
E possível entender esta passagem meramente como uma descrição
do mundo gentílico contemporâneo na sua idolatria e na sua iniqüidade
exagerada. Mas limitar esta discussão penetrante a um período ou a um segmento
da humanidade é deixar de perceber nela a Palavra de Deus para nós. Paulo aqui
fala da injustiça dos homens (anthropon, 18) em todas as épocas e culturas. O
seu objetivo não é simplesmente informar os cristãos romanos sobre muitos dos
seus contemporâneos, porém, mais profundamente, mostrar a condição depravada
dos homens pecadores. Ele está descrevendo a condição humana separada do poder
redentor de Deus. “A humanidade, como resultado da sua desobediência a Deus, se
envolveu numa condição desesperada e moralmente enferma”.
a) Introdução: A ira de Deus (1.18). A condição de pecado é
uma existência sob a ira de Deus, que do céu se manifesta. A repetição do verbo
grego apokalyptetai é prova de uma revelação dupla — de “justiça” (17) e de ira
(18). Da mesma maneira como “a justiça de Deus” significa “todas as situações
em que o homem está em uma relação correta com Deus”, também a ira de Deus
significa a condição do homem quando ele se afastou do Criador. Esta
perspectiva deve ser ampliada de modo a abranger toda a humanidade. Cada
pessoa, sem exceção, conhece ou a justiça de Deus ou a ira de Deus — o seu amor
ou o seu desprazer, o seu poder salvador ou o seu julgamento. “Em Cristo”,
Lutero observou certa vez, “Deus é amor’. Fora de Cristo, ‘Nosso Deus é um fogo
que consome”.
A ira de Deus, assim, não é uma verdade incidental. E parte
da auto-revelação divina associada com o evangelho. Esta ira... (agora) se
manifesta exatamente como “a justiça de Deus”. O tempo do verbo é o presente
contínuo, de modo que Paulo está descrevendo um processo que está acontecendo
diante dos nossos olhos. Mas da mesma forma como a salvação antecipa a
manifestação final da justiça de Deus, também a ira antecipa o julgamento final
do pecador no “dia da ira e da manifestação do juízo de Deus” (2.5).
O que é a ira de Deus (orge theou)? Paulo acrescenta à
palavra ira o genitivo de Deus somente em outras duas passagens (Ef 5.6; Cl
3.6), e ele nunca usa o verbo “irar-se” tendo Deus como sujeito. Isto levou
muitos intérpretes a definir a ira em um sentido completamente impessoal. Dodd
afirma que “para Paulo, ‘a ira’ significava não um determinado sentimento ou
uma atitude de Deus com relação a nós, mas algum processo ou efeito no campo
dos fatos objetivos” Em outras passagens, o apóstolo adverte que “tudo o que o
homem semear, isso também ceifará” (Gl 6.7), e que “o salário do pecado é a
morte” (6.23). Deus criou uma ordem moral na qual o pecado é o seu próprio
castigo e destruição, e neste capítulo a ira divina significa que Deus desiste
dos homens em conseqüência da rebelião e dos maus atos deles (1.24-32).
Calvino comenta aqui que “a palavra ira, referindo-se a Deus
em termos humanos como é normal nas Escrituras.., não implica em alguma emoção
em Deus, mas se refere apenas aos sentimentos do pecador que é punido”. Mas
Calvino estará correto? Sem dúvida, devemos ter cuidado ao falar da emoção
divina. Entretanto, a maneira como Paulo coloca a ira de Deus em contraposição
à sua “justiça” no versículo 17 e usa o verbo dinâmico revelar (versão RA) nos
dois casos, sugere que ira representa alguma coisa na atitude e no propósito de
Deus.
Da mesma maneira como há um processo positivo de amor divino
e de misericórdia para possibilitar a salvação do homem, assim também existe um
processo positivo no desprazer divino pelo pecado. P. T. Forsyth pergunta:
“Quando um homem acumula os seus pecados e se alegra com a
iniqüidade, será Deus um simples espectador do processo? Será que a pressão de
Deus sobre o homem não o cega, não o força, não o tranca, não o fecha no pecado,
se tão-somente ele se fechar para a misericórdia? Será suficiente dizer que
isto nada mais é do que a ação de um processo que Deus simplesmente assiste de
uma maneira permissiva? Ele é apenas passivo e não positivo em relação à
situação? Pode o Absoluto ser passivo com relação a qualquer coisa? Neste caso,
onde está à ação interior do Deus pessoal cuja imanência nas coisas é uma das
suas maiores revelações modernas?” Quando Paulo prossegue dizendo “Deus os
entregou” (24, 26, 28), isto certamente descreve uma atividade pessoal.
John Murray encara a ira como “A santa reação de Deus
contrária àquilo que é uma contradição da sua santidade”. Alan Richardson a
define como sendo “a condenação justa e implacável de Deus ao pecado em
qualquer forma”. A. M. Hunter dá uma definição abrangente da ira de Deus como
“o seu santo amor reagindo contra o mal — o ‘vento adverso’ da vontade divina
soprando contra o pecador, não apenas no Dia do Juízo, mas agora, e resultando
na degeneração e na humilhação do pecador”. Como Deus é Deus, a sua ira é uma
realidade terrível. Mas a ira não é ódio. “O ódio é o oposto do amor; a ira é a
forma que o amor assume com relação àqueles que se opõem a ele. O ódio é
injusto, a ira é justa. O ódio procura destruir; a ira perdoa. Assim, quando
Paulo diz que a ira de Deus se revela juntamente com a sua justiça, ele está
dizendo que Deus está oferecendo a absolvição, mas que aqueles que se recusarem
a aceitá-la serão condenados”.
A impiedade (asebeia) e a injustiça (adikia) contra as quais
se revela a ira divina devem ser distintas, mas não separadas uma da outra,
pois ambas nascem da recusa de glorificar a Deus como Deus (1.20). Asebeia
descreve uma ofensa no campo religioso, e se expressa como idolatria, à
adoração da criatura ao invés do Criador (1.19-23). Adikia significa a
perversidade moral e é exemplificada pela imoralidade e pela maldade (1.24-32).
Esses dois pecados são a expressão da disposição por parte
dos homens que detêm (“limitam”, RSV; “sufocam”, NEB) a verdade em injustiça. O
verbo é usado aqui com o mesmo sentido que em 2 Tessalonicenses 2.6-7, e
transmite a idéia de “reprimir”. Portanto, é adequado para expressar a sua
reação à verdade revelada. Isto implica como Paulo irá demonstrar que todos os
homens têm a verdade, e que pela sua injustiça eles impedem que ela atinja o
seu objetivo. Assim, todo o pecado é uma resistência deliberada a Deus.
Abrindo esta seção com um anúncio do derramamento da ira de
Deus sobre os peca- dores, Paulo está preparando o terreno para a declaração da
justiça de Deus, que ocorre -em 3.21—8.39. Para procurar a ajuda divina, não é
suficiente saber que esta ajuda está disponível; o homem deve estar convencido
de que ele precisa desesperadamente dela. “A angústia existencial do homem é o
que o incita a buscar a Deus; mas a sua angústia deve ser tão profunda e tão
devastadora que ela não se satisfaça com respostas enganosas”.
Portanto, Paulo começa aqui a descrever a situação difícil
do homem pecador, antes de estabelecer o plano pelo qual Deus vem ao seu
resgate em Cristo. “Antes de ser salvo, o homem é condenado; mas ele é
condenado para ser salvo; a sua condenação é a primeira fase da sua salvação,
pois somente aquele que sabe que está perdido busca refúgio na graça e é capaz
de apreciar a sua completa gratuidade. E por isso que as boas-novas’
propriamente ditas são um pré-requisito para a proclamação da ‘ira de Deus”.
b) O pecado inicial do homem (1.19-23). Agora, Paulo nos
conta por que a ira de Deus se derrama sobre os homens pecadores. A razão é
porque os homens recusaram o conhecimento de Deus que lhes foi oferecido pelo
Criador. A maldade dos homens nada mais é que um sintoma de uma falta ainda
mais básica. “Todas as perversões da vida [Paulo irá demonstrar] podem ser
rastreadas de volta a uma causa fundamental, e este pecado inicial não é
encontrado no campo moral, mas sim no da religião: a perversão da vida surge da
perversão da fé”.
Nós violamos a verdade divina. Paulo começa: Porquanto o que
de Deus se pode conhecer neles se manifesta, porque Deus lho manifestou (19). A
tradução da primeira frase (en autois) na versão ARC é neles se manifesta expressão
que significa simplesmente que toda revelação precisa passar pela consciência
humana. Mas observemos que Deus se pode conhecer porque Ele se faz conhecido. A
descoberta humana deve ser compreendida dentro dos limites da revelação divina.
O Deus invisível se fez conhecido desde a criação do mundo
(20). Embora a expressão apo ktiseos kosrnou possa ser traduzida como “do
universo criado”, geralmente se concorda que a idéia de Paulo é temporal:
“desde a criação do universo”. Desde a sua origem, a criação falou às mentes
reflexivas a respeito de Deus. Embora Deus não possa ser conhecido diretamente
por meio da razão (1 Co 1.21), é possível conhecê-lo. No entanto, este
conhecimento não é confiado a uma pessoa passiva; para saber a respeito de
Deus, é necessário adotar uma atitude positiva e receptiva. A criação existe
como um convite para o diálogo com Deus. Certas coisas claramente se vêem, mas
somente se desejarmos vê-las.
A contemplação pelo homem do mundo considerado como uma obra
de Deus tem dois objetivos: 1) o seu eterno poder e (2) a sua divindade. O
homem está ciente de sua dependência de um Poder (dynamis) que preside toda a
sua existência. Por meio desse poder ele vem a existir e, em face dele,
reconhece que não é nada. Além disso, quando ele considera a temporalidade da
sua própria existência, percebe que este poder é eterno.
Em segundo lugar, nós vemos divindade (theiotes). O universo
não se move por um poder cego, mas por um poder que é divino em caráter — é
Deus. “Ou seja, o que se pode ver claramente é que Deus é Deus e não homem. A
observação da vida criada é suficiente para mostrar que a criação não provê a
chave da sua própria existência”. No entanto, nós deixamos de entender se
interpretarmos que Paulo está tentando “provar” a existência de Deus. Na
verdade, os pecados que Paulo censura mais tarde neste capítulo não são aqueles
dos homens que não acreditam em Deus, mas os daqueles que se recusam a honrar a
Deus como Deus. E por isso que os pecadores e os incrédulos são inescusáveis.
“Deus certamente pode visitar os homens com ira porque,
embora eles possam não ter tido a vantagem de ouvir o evangelho, rejeitaram o
conhecimento rudimentar de Deus que foi aberto a eles”. A raiz da situação
pecadora do homem é que, embora tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como
Deus, nem lhe deram graças (21). Como uma criatura, o homem deve ao seu Criador
glória e ações de graça. Isto não significa meramente reconhecer a existência
de Deus, mas reconhecer que Ele é Senhor e viver em obediência agradecida.
O que se exige é que o homem, alegremente e com gratidão,
reconheça que é uma criatura em serviço fiel a Deus. Séculos antes de Paulo,
Isaias pronunciou a queixa divina: “O boi conhece o seu possuidor, e o jumento,
a manjedoura do seu dono, mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não
entende” (Is 1.3).
No orgulho do seu coração, o homem se recusa a glorificar a
Deus como Deus. Na preocupação consigo mesmo, ele se afasta de Deus como o
Centro do seu ser, e como a fonte da sua felicidade — do divino amor rumo ao
amor próprio. Ele não deseja reconhecer o Senhor da sua existência; ele decide
ser seu próprio senhor e glorificar-se a si mesmo. Este estabelecimento do
próprio ser como o falso fim da vida é o pecado inicial do homem e a origem de
toda a sua miséria.
A conseqüência imediata da auto-idolatria é o obscurecimento
do seu poder de raciocínio. Como os homens se afastaram de Deus, em seus
discursos se desvaneceram (dialogismois, raciocínio), e o seu coração insensato
se obscureceu. Dialogismos é quase sempre usado tanto na Septuaginta quanto no
Novo Testamento em um sentido ruim, de “razões e especulações perversas e
egoístas”. A versão NASB traduz o texto como “se enfatuaram nas suas
especulações”. Coração (kardia) tem um amplo uso. E o órgão dos sentimentos
(9.2), do pensamento (10.6), e da vontade (1 Co 4.5; 7.37), o “eu” interior e
oculto (2.29; 8.27). O significado pretendido por Paulo aqui é que o coração,
como centro das afeições, do intelecto e da vontade humana, está obscurecido e
sem sentido, por causa da auto-idolatria: Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos
(22). Sem contato com a realidade, as especulações pretensiosas dos homens são
tolas e sem sentido.
Como os homens perderam o Deus verdadeiro, eles inventaram a
“religião” humana. Eles mudaram (“substituíram”, NASB) a glória do Deus
incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, e de aves, e de
quadrúpedes, e de répteis (23). Isto ilustra a profundeza da tolice aonde chega
o raciocínio dos homens quando rejeitam a verdade de Deus. “Em seu pensamento
reduzem Deus a duas pernas, depois a quatro patas, e finalmente a rastejar
sobre o ventre!”20 E em todo o tempo eles “se dizem sábios” (RSV)!
c) A depravação moral do homem (1.24-32). Agora Paulo
descreve as conseqüências morais da rebelião do homem contra Deus. Se a raiz do
pecado do homem é a perversidade religiosa, o fruto é a corrupção moral.
Arrancado de Deus, da Fonte da sua vida e felicidade, o homem procurou a
satisfação na criatura.
“A rebelião contra Deus criou um vácuo na natureza humana”,
escreveu D. R. Davies. “Esse vácuo precisa ser preenchido, se não por Deus,
então pelo demônio do ser. Todos os desejos e excessos do comportamento humano
são tentativas de satisfazer àquele ‘doloroso vazio que o mundo nunca poderá
preencher’. O homem, como resultado da sua queda da Graça Divina, está condenado
a um anelo insaciável”. E esta divina condenação sobre a humanidade que Paulo
retrata no restante deste capítulo.
Ele repete três vezes a expressão Deus os entregou [ou Deus
os abandonou] (versículos 24, 26, 28), expressando com uma ênfase assustadora
as conseqüências da rebelião do homem. Deus entregou ou abandonou os pecadores
à sensualidade (24-25), à perversão sexual (26-27), e à vida anti-social
(28-32).
1) Sensualidade (1.24-25). A conjunção Pelo que também (24)
indica que a retribuição que Paulo vai descrever tem a sua base no pecado
antecedente, e é um castigo justo pela rebelião do homem. Como os homens se
rebelaram contra Deus, o Criador os abandonou às concupiscências do seu
coração, à imundícia, para desonrarem o seu corpo entre si. “Eles pecaram
degradando a Deus, pelo que também Deus os degradou”. Nas palavras de Wesley:
“Se um homem não adora a Deus como Deus, ele fica tão abandonado a si mesmo que
se despoja da sua própria humanidade”. Seguindo o mesmo raciocínio, Barth
observa: “Quando Deus é privado da sua glória, os homens também são privados da
deles. Profanados nas suas almas, eles também profanaram os seus corpos, pois
os homens são uma coisa só”.
Esses homens mudaram
a verdade de Deus em mentira (to pseudei, “a mentira”). A verdade é que Deus é
Deus; a mentira é a exaltação da criatura acima do Criador, que é bendito
eternamente (25). Embora a referência imediata do apóstolo nesta passagem seja
à idolatria pagã, a sua referência definitiva é ao orgulho pecador do coração
humano. A mentira é a usurpação idólatra da glória divina pela criatura. Isto
teve início com Satanás, a quem Jesus chama de pai da mentira (Jo 8.44-45).
No Jardim, Satanás mentiu ao primeiro casal, prometendo que
se eles afirmassem a sua independência do seu Criador seriam “como Deus” (Gn
3.4-5, RSV) em poder e em sabedoria. A conclusão indescritível e irremediável
do pecado é se recusar a amar a verdade e acreditar na mentira (2 Ts 2.9-12).
Isto deve ser condenado para sempre. Tal apostasia é o fim da capacidade moral,
e traz a completa desintegração moral e espiritual. A religiosidade incurável
do coração humano é tal, que se o homem não adorar o Criador, ele
inevitavelmente servirá à criatura.
2) Perversão (1.26-27). Pelo que, lemos, Deus os abandonou
às paixões infames (26). “Como é a urgência mais explosiva da vida, quando
livre do controle mental, o sexo se liberta em perversões selvagens”.
A referência óbvia aqui é à homossexualidade, que substitui
o uso natural do sexo por aquele que é contrário à natureza. O sexo é o
presente de Deus para a humanidade, para a procriação da raça (Gn 1.27-28, 31)
e para a satisfação pessoal em um casamento monógamo (Gn 2.18-24; cf. 1 Co
7.17). A homossexualidade é uma perversão — repugnante e merecedora de pena —
deste presente sagrado e tão bonito (cf. 1 Co 6.91O). Inflamaram-se em sua
sensualidade uns para com os outros (27) é uma referência à intensidade desta
paixão não natural, e não deve ser confundida com o abrasar-se de 1 Coríntios
7.9, que encontra uma saída no casamento. Aqui se trata de “arder de uma
luxúria insaciável, que não possui um desejo natural e legítimo, do qual a
luxúria é uma perversão ou distorção. E a luxúria direcionada a alguma coisa
que é, basicamente e sob quaisquer circunstâncias, ilegítima”.
As palavras 'recebendo em si mesmos a recompensa que convinha
ao seu erro' se referem à idéia expressa nos versículos 24-26; entregar-se à
imoralidade é a conseqüência judicial da rebelião do homem. O erro recompensado
é o pecado da idolatria descrito em 2 1-23. A recompensa consiste no
“crescimento da própria luxúria insatisfeita, juntamente com as terríveis
conseqüências morais e físicas da devassidão”. Esta descrição da sordidez da
humanidade pecadora nos prepara para uma análise mais ampla do abandono
judicial de Deus no versículo que vem a seguir.
2. O Fracasso dos
Judeus, 2.1—3.8
Até agora, Paulo falou da degradação visível dos homens que
rejeitaram a verdade; a ira de Deus está agora operando na terrível destruição
daqueles que não o reconhecem como Deus. Mas Paulo sabia que havia aqueles que
se uniam a ele na condenação da maldade humana. Ele imagina um destes críticos
objetando: “Está bem, é assim que os pagãos e os mundanos são. Mas certamente
você não nos compara com esta gentalha? Eles estão perdidos, mas nós não, nem
estamos perdidos nem precisamos deste Salvador que você está anunciando”. A
princípio não está claro, mas logo fica aparente que este homem saudável que
não precisa de médico é basicamente (mas não exclusivamente) o judeu.
a) O julgamento de Deus e o crítico (2.1-16). Portanto, és
inescusável quando julgas, ó homem, quem quer que sejas, porque te condenas a
ti mesmo naquilo em que julgas a outro; pois tu, que julgas, fazes o mesmo (1).
Paulo aqui está advertindo seus leitores no estilo antigo de crítica violenta.
Por toda a Epístola será mais fácil acompanhar esta
argumentação, se imaginarmos o apóstolo face a face com um homem enfadonho que
fica fazendo perguntas e que interrompe o seu raciocínio de tempos em tempos
com uma objeção que ele trata de responder, primeiramente censurando com um
“Deus nos livre!” (“Nem em pensamento!”) e a seguir destruindo-a com uma
resposta bem pensada.
Portanto (1) assinala o começo de uma transição dos gentios
para os judeus. Somente no versículo 17 Paulo se volta especificamente ao
problema dos judeus; aqui, como nos versículos 9-10 e 12-16, os seus
pensamentos se aplicam igualmente aos gentios e aos judeus. Embora, sem dúvida,
esteja pensando basicamente nos judeus, ele constrói o seu argumento em termos
que são suficientemente genéricos para incluir outras pessoas que também
criticam os maus procedimentos delineados na seção anterior. Ao esclarecer a
culpa do judeu, Paulo define primeiramente os princípios gerais do julgamento,
que ele começa a aplicar ao falar dos efeitos aos judeus nos versículos 17-29.
F. F. Bruce vê o estóico moralista Sêneca, contemporâneo de
Paulo e tutor de Nero, como um representante de outro lado do mundo pagão do
século 1. Sêneca podia escrever tão eficazmente sobre a vida boa, que
Tertuliano o chamava afetuosamente de “nosso próprio Sêneca”. Ele não somente
exaltava as virtudes morais como também denunciava a hipocrisia, e via o
caráter penetrante do mal. “Todos os maus hábitos”, escreveu, “existem em todos
os homens, embora todos os maus hábitos não se destaquem em cada homem”.
Ele ensinava e praticava diariamente o auto-exame,
ridicularizava a idolatria vulgar e assumia o papel de um guia moral. Ainda
assim, muitas vezes ele tolerava maus hábitos em si mesmo, não tão diferentes
daqueles que condenava em outras pessoas — e o mais flagrante deles foi a sua
cumplicidade com Nero, quando este assassinou sua mãe, Agripina.
No entanto, o fato de Paulo estar pensando basicamente nos
judeus, mesmo nesta seção, fica evidente pela repetição da expressão
primeiramente do judeu e também do grego (9-10). Murray argumenta
convincentemente pela identificação do oponente como sendo um judeu.
1) A propensão para julgar os gentios pela sua perversidade
religiosa e moral era uma característica peculiar dos judeus, que eram
intensamente conscientes dos seus altos privilégios e prerrogativas como
membros da comunidade escolhida de Israel.
2) A pessoa a quem Paulo se dirige desfruta de modo especial
das riquezas da sua benignidade, e paciência, e longanimidade (4), como um
privilégio da aliança.
3) O argumento de Paulo explica que os privilégios ou
vantagens especiais não isentam do julgamento de Deus (versículos 3, 6-11).
4) Finalmente, “a
palavra expressamente dirigida ao judeu no versículo 17 seria muito brusca se
agora, pela primeira vez, se estivesse dirigindo a ele, ao passo que, se o
judeu é a pessoa a quem Paulo se dirige nos versículos precedentes, então a
identificação mais expressa com ele no versículo 17 é natural”.
Portanto (dio) conecta o argumento de Paulo com 1.32a, “Os
quais, conhecendo a justiça de Deus”. “Os homens conhecem o veredicto de Deus
para os pecados que são descritos em 1.29ss; portanto o homem que julga prova
ser inescusável, porque ele também peca e, no ato de julgar, prova que sabe o
que é certo”. O termo inescusável se refere a 1.20. Assim como o homem que
detém a “verdade em injustiça” (1.18) é “inescusável”, o homem que julga a
outro e ainda assim faz o mesmo, também o é. Um juiz é inescusável se fizer
algo errado, porque como um juiz ele conhece a lei — ele, entre todos os
homens, é aquele que não pode alegar ignorância.
Aqui está o fato da
consciência, que será discutido mais amplamente nos versículos 14-15. A
perversidade do coração humano é revelada em sua tendência de condenar outros
pelo que permite a si mesmo. A pista para o capítulo 2 está na última frase do
versículo 1. O juiz auto designado está fazendo as mesmas coisas que condena,
ou seja, recusa-se a honrar a Deus ou dar-lhe graças, e se diz sábio (cf.
1.21-22).
Por trás de todos os pecados da lista anterior está o pecado
da idolatria, que revela a ambição humana de colocar-se no lugar de Deus. Isto
é precisamente o que o juiz iníquo faz, quando assume o direito de condenar
injustamente o seu semelhante.
Com um discernimento característico, Karl Barth observa: “Aí
aparece, da justiça do Deus dos profetas, a justiça humana dos fariseus, que é
tão sem religiosidade quanto injusta”. Mas, da justiça de Deus revelada no
evangelho à mesma justiça humana pode emergir. O fariseu vangloria-se em cada
um de nós: “O Deus, graças te dou, porque não sou como os demais homens” (Lc
18.11).
“O orgulho, em todas as suas formas, a vaidade, o egotismo,
a complacência espiritual, uma religião centrada em si mesmo, o farisaísmo que
mostra até mesmo alguma bondade, contudo uma falsa bondade — todas estas formas
de iniqüidade moral provavelmente aparecem naqueles cujas vidas são
disciplinadas e virtuosas”.
Este é o espírito do irmão mais velho condenado pelo nosso
Senhor na parábola dos dois irmãos (Lc 15.25-32). O orgulho espiritual e a
falta de censura nos arrancam do amor do Senhor tão certamente quanto o
adultério ou o roubo. Assim Jesus ensinou, e assim Paulo adverte, O único
antídoto para esta auto justificação o reconhecimento de que “nossa esperança
está construída em nada menos do que o sangue e a justiça de Jesus”, e que
qualquer bem que possa ser encontrado em nós se deve inteiramente à graça de
Deus e não às nossas próprias obras (1 Co 15.10; Ef 2.8-9; Fp 2.12).
O versículo 2 deve
ser interpretado como uma observação do oponente. Moffatt, portanto, coloca a
afirmação entre aspas: “‘Bem sabemos que o juízo de Deus é segundo a verdade
sobre os que tais coisas fazem”. Isto é, o julgamento de Deus é imparcial (cf.
11). No versículo 3, Paulo concorda: “Muito bem, e você imagina que irá escapar
ao julgamento de Deus, ó homem, você que julga aqueles que praticam tais coisas
e fazem o mesmo que você faz?” (Moffatt). O segundo “você” é enfático: Você
acha que você, entre todos os homens, irá escapar? O oponente sem dúvida
imaginava que sim, uma vez que ele não tinha sido entregue a “uma mente
reprovada” (cf. 1.28-32), o sinal da ira de Deus sobre os gentios. “Ao invés
disso, ele era o objeto da bondade de Deus. Mas este era um privilégio que ele
não tinha entendido bem. Agora, ele deve ser esclarecido”.
Ou desprezas tu as riquezas da sua benignidade, e paciência,
e longanimidade (4). A tendência dos judeus era a de aceitar tudo isto como uma
prova da parcialidade divina para com o Povo Escolhido. O Livro da Sabedoria,
que Paulo parece estar seguindo de perto ao escrever toda esta seção, nos ajuda
a sentir toda a força da sua acusação. No final de Sabedoria 14, encontramos
uma lista de maus hábitos pagãos similar à lista de Paulo em 1.29-31. O autor
prossegue: Mas Tu, nosso Senhor, és gracioso e verdadeiro, longânime e ordena
todas as coisas com misericórdia.
Pois mesmo que pequemos, somos teus, conhecemos teu domínio;
mas não pecaremos, sabendo que somos teus; pois conhecer a Ti é a justiça
perfeita, conhecer o teu domínio é a raiz da imortalidade.
“Pois nenhum mal do homem nos desviou, nem o fez o trabalho
infrutífero do pintor, uma forma manchada com várias cores [ídolos]” (Sabedoria
15:1- 4). Esta passagem descreve o crítico que Paulo tinha em mente. Ele se
considera superior ao idólatra. Mesmo que peque, ele evita o pecado fundamental
da idolatria. Ele pertence ao povo escolhido, e, portanto tem a garantia da
salvação.
Mas, diz Paulo, isto é “interpretar mal a generosidade e a
paciente misericórdia de Deus” (4, Phillips). Esta complacência espiritual deixa
completamente de perceber a tolerância divina. “Você não percebe que a bondade
de Deus tem a intenção de levar você ao arrependimento?” (Phillips) Nós
recebemos o poder do julgamento moral, não para censurar os nossos
companheiros, mas para julgarmos a nós mesmos e conseqüentemente sermos levados
ao arrependimento e ao retorno a Deus. “Conhecer o bem não nos dá o direito de
reivindicar a indulgência divina.” O fato de que à hora do julgamento divino
ainda não chegou para nós, de maneira alguma significa que Deus nos julga
favoravelmente.
O conhecimento do bem é uma das condições para o
arrependimento; a segunda é o intervalo de tempo para uma pausa, concedido pela
paciência de Deus.
Então, o judeu sabe que Deus é bom e misericordioso. Mas, em
face da divina bondade ele exibe dureza e um coração impenitente (5). Isto “o
remove da esfera da graça divina, tão certamente quanto o faz o pecado da
idolatria entre os pagãos”.
Desprezar as riquezas da misericórdia divina é acumular ira
para o dia da ira e da manifestação do juízo de Deus. A ira aqui é invocada
sobre o crítico judeu como já foi invocada sobre a humanidade em geral em 1.18.
As duas passagens são paralelas. Existe uma única diferença
entre elas — a ira está sendo revelada agora contra os gentios, enquanto a
tempestade se aproxima para os judeus. A época em que irá atingi-los é chamada
por Paulo de dia da ira. Esta expressão vem dos profetas do Antigo Testamento.
“Aquele dia é um dia de indignação, dia de angústia e de ânsia, dia de alvoroço
e de desolação, dia de trevas e de escuridão, dia de nuvens e de densas trevas”
(Sf1.15; cf. Ji 2.2 e Am 5.18).
b) A Culpa dos Judeus (2.17-29). Retornando à sua crítica
(veja os comentários sobre 2.1), Paulo se dirige diretamente aos judeus. O que
ele disse-nos vv. 1-16 se aplica tanto aos judeus quanto aos gentios, mas
versículo após versículo a relevância do seu argumento para o judeu tornou-se
cada vez mais aparente. Agora ele se dirige diretamente ao homem que está
orgulhosamente consciente de pertencer ao Povo Escolhido: Eis que’ tu, que tens
por sobrenome (eponomaze)’ judeu (17).
A palavra judeu apareceu pela primeira vez no Antigo
Testamento em 2 Reis 16.6. “O uso que Paulo faz dessa palavra aqui e nos
versículos 28, 29, assim como outras evidências (01 2.15; Ap 2.9; 3.9; cf. Zc
8.23), indica que este era um nome que, na mente do judeu, estava associado com
tudo aquilo de que ele se orgulhava”.99 A lista que se segue, das vantagens
resultantes do recebimento da lei, é um pouco satírica, pois Paulo mostra como
o judeu distorceu os seus privilégios. E repousas (epanapaue) na lei sugere uma
“certeza indolente”. “Os judeus foram escolhidos por Deus, e o presente da Torá
é prova deste fato. Conseqüentemente a posse era considerada suficiente, sem
que demonstrassem qualquer preocupação com a prática”.
O judeu repousava na lei e confiava nela para dar-lhe uma
posição segura diante de Deus. Da mesma maneira ele se gloria (kauchasai) em
Deus, não humildemente, de acordo com Jeremias 9.24, mas arrogantemente. “Sem
qualquer conhecimento da bondade de Deus”, diz Calvino sobre os judeus, “eles O
fizeram peculiar- mente à sua maneira, embora não O possuíssem internamente, e
afirmaram que eram o Seu povo, como um ato de ostentação vazia perante os seus
companheiros. Assim, esta não era a glorificação que vem do coração, mas a
ostentação da língua”.
Agora Paulo concede ao judeu um conhecimento da sua vontade
(18, to thelema) — literalmente, “à vontade” — e a aprovação daquelas coisas
excelentes (ta diapheronta) que ele obteve sendo instruído por lei.
Todas estas reivindicações orgulhosas se baseavam na posse
da forma da ciência e da verdade na lei. A palavra para forma (morphosin) aqui
pode significar o esquema, a definição, “a personificação” da forma essencial
(morphe; Fp 2.6- 7). Sanday e Headlam observam: “A lei era uma expressão
verdadeira da verdade divina, até onde ela alcançava”. No entanto, como Thomson e Davidson destacam,
Paulo pode estar empregando morphosis aqui com o mesmo sentido com que ele usa
a palavra em 2 Timóteo 3.5, onde ela está em contraste com dynamis, “poder”.
“Certamente, a dádiva da revelação era real; mas o problema é que o judeu,
através da desobediência, deixou de ter um discernimento maior dela, e, apesar
da sua ostentação, na verdade não era nada além de um pobre guia, uma fraca
luz, instrutor e mestre dos pagãos”.
Destas vantagens se
segue, nos versículos 21 a 24, uma exposição crítica da incoerência do judeu.
Ela é colocada “numa série de questões pungentes, baseadas nestas admissões...
e colocadas em impressionante contraste com elas”.
'Tu, pois, que ensinas a outro, não te ensinas a ti mesmo?
Tu, que pregas (ho kerysson) que não se deve furtar, furtas? Tu, que dizes que
não se deve adulterar, adulteras? Tu, que abominas os ídolos, cometes
sacrilégio?' (2 1-22) A última pergunta é traduzida de maneira geral: “Tu, que
abominas os ídolos, roubas os templos?” (ERV). Godet opina que o significado é:
“O seu horror à idolatria não chega a evitar que você aclame como um bom prêmio
os preciosos objetos que foram usados na adoração idólatra, quando você não
pode fazê-los seus”.
O versículo 23 pode ser interpretado como uma pergunta (ARC)
ou como uma afirmação que resume a posição a que se chegou neste ponto: “Tu,
que te glorias na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei?”. E mais do
que simplesmente a opinião de Paulo: é o veredicto da própria Escritura. “Pois,
como diz a Escritura, ‘Porque o nome de Deus é blasfemado entre os gentios por
causa de vós” (24, NEB). Esta é uma citação de Isaías 52.5 na Septuaginta (veja
também Ez 36.20). Calvino comenta: “Todo aquele que infringe a lei desonra a
Deus, pois todos nascemos para adorá-lo em santidade e em justiça.
No versículo 25, o apóstolo “persegue o judeu no seu último
abrigo” e continua a expô-lo no último refúgio, a sua confiança ilusória na
posse do ritual da circuncisão.
Ele também antecipa 3.1-2, onde ele é cuidadoso para indicar
a vantagem da circuncisão - Porque a circuncisão é, na verdade, proveitosa, se
tu guardares (prasses) a lei. Este sentença esclarece o que Paulo quer dizer
com “guardar” ou praticar a lei. Para o apóstolo, guardar a lei ou cumpre a lei
(27) não quer dizer executar os preceitos detalhados escritos na Torá, mas
satisfazer aquela relação com Deus segundo o que a lei indica — uma relação não
de legalismo, mas sim de fé (3.31; 10.6-11). A circuncisão era o sinal e o selo
da aliança, revelada a Abraão, que era uma aliança de promessa e de graça.
O versículo 27 é interpretado como sendo uma continuação do
26. Cumprir os decretos ou preceitos da lei é cumprir a lei (ton nomon
telousa). Godet entende esta frase como sendo “uma frase que expressa o
cumprimento real e perseverante, O amor que o evangelho coloca no coração do
crente é na verdade o cumprimento da lei, Romanos 13.10.120 O cristão fiel
julgará o judeu, que pela letra e circuncisão é transgressor da lei. A
expressão julgará não significa “sentar-se no tribunal”, mas se refere ao
“julgamento da comparação e do contraste” (cf. Mt 12.4142).121 Letra significa
a lei escrita nas tábuas de pedra, ou no Antigo Testamento (cf. 7.6; 2 Co 3.6-7).
Vivendo pela letra, e não pelo Espírito, o judeu na verdade transgride a lei.
Os versículos 28 e 29 explicam por que o ritual da
circuncisão pode representar tão pouco. Deus olha para o coração e não para as
aparências externas. O versículo 28 contém a frase negativa, e o 29, a
afirmativa, desta verdade geral. Não é judeu o que o é exteriormente (en to
phanero, na aparência), nem é circuncisão a que o é exteriormente (a mesma
expressão em grego) na carne (28). Charles Hodge parafraseia: “Ele não é do
povo de Deus, se o é apenas exteriormente”.’ Nada externo ou visível garante
este relacionamento especial com Deus. A frase afirmativa é a seguinte: Mas é
judeu o que o é no interior, e circuncisão, a que é do coração, no espírito,
não na letra (29).
c) A vantagem do judeu (3.1-8). O que Paulo acaba de dizer
parece eliminar a vantagem do judeu. Não é bem assim, ele responde. A linha de
pensamento desta passagem, uma das mais difíceis da Epístola, é a seguinte:
1) Se o judeu está sob a ira de Deus, tanto quanto os
gentios, que vantagem ele tem sobre eles? Resposta: ele possui os oráculos de
Deus (versículos 1-2).
2) Mas se esta posse
não serviu ao objetivo pretendido (a fé de Israel no Messias), isto não anula a
fidelidade de Deus? Resposta: De maneira nenhuma; pelo contrário, ressalta a
fidelidade de Deus (versículos 3-4).
3) Mas se Deus usa o pecado humano para a Sua glória, como
pode Ele fazer dos pecadores o objeto da Sua ira? Resposta: Esta objeção se
autocondena, é completamente falha, pois questiona a própria justiça de Deus
(versículos 5-8).
Primeira pergunta. Qual é, logo, a vantagem do judeu? Ou
qual a utilidade da circuncisão? (1) Parafraseada, a pergunta é: “Então, se ser
um judeu interiormente é o que importa, se é a ‘circuncisão do coração’ o que
realmente importa, existe alguma vantagem em pertencer a Israel ou em ser
fisicamente circuncidado?”
Paulo responde: Muita, em toda maneira (2). Claro que existe
uma vantagem de se pertencer ao povo de Deus, porque, primeiramente, as palavras
de Deus lhe foram confiadas. A palavra primeiramente (proton) em geral
significa “em primeiro lugar” ou “acima de tudo” (NEB). Mas se este é o sentido
com que Paulo utiliza a palavra aqui, o seu pensamento se desvia, e o seu
significado se altera.’Godet pensa que Paulo está, aqui, limitando
deliberadamente o seu argumento. “As palavras precedentes, em toda maneira,
sugerem: ‘Eu poderia mencionar muitas coisas sob este cabeçalho, mas vou me
limitar àquela que é mais importante’ Esta forma de expressão, longe de indicar
que ele pretende mencionar outras, ao contrário, mostra por que ele não irá
mencioná-las.
Todas elas derivam daquela que ele indica a seguir. A
primeira e abrangente vantagem dos judeus consiste nisto, no fato de que a eles
foram confiadas às palavras de Deus. Em um contexto judeu, o termo palavras
pode significar somente as Escrituras, e foi aos judeus que a Palavra de Deus
foi revelada.
A correspondência com a passagem paralela em 9.4 sugere que
aqui o significado é o Antigo Testamento inteiro. “Possuir a lei é por si só
uma vantagem. Israel conhece o pensamento de Deus (cf. 2.18), e não pode negar
a completa reivindicação moral que ele faz sobre as suas criaturas (veja os
versículos 1O18). Possuir a revelação da vontade e do objetivo de Deus é
verdadeiramente uma honra mais elevada; mas se é uma honra elevada, é também
uma séria responsabilidade. Como disse o Senhor: “E a qualquer que muito for
dado, muito se lhe pedirá” (Lc 12.48).
Segunda pergunta. Pois quê? Se alguns foram incrédulos, a
sua incredulidade aniquilará a fidelidade de Deus? (3) A expressão, pois quê
pode ser traduzida como “E se?”2’ ou “E daí?”.
A pergunta é: “Que acontece se alguns dos judeus não receberem Cristo?”
Foram incrédulos (epistesan) é um verbo aoristo e “se refere a um fato
histórico em particular mais do que a um estado permanente de coisas, como a
incredulidade judaica tinha estado sob a aliança”.” Foi a rejeição de Jesus
como o Messias por parte de Israel que pareceu anular a fidelidade de Deus.”2 A
expressão a fidelidade de Deus (ten pistin tou theou) poderia, em outro
contexto, significar “fé em Deus”. Aqui, o genitivo deve ser interpretado como
um possessivo; e o substantivo, conseqüentemente, deve significar “fidelidade”
(RSV, NEB, NASB). A pergunta é: Pode a incredulidade dos judeus, com respeito a
Jesus, aniquilar a fidelidade de Deus ao Seu povo?
De maneira nenhuma! (4: me genoito, “que isso não seja
assim!”), responde Paulo. Claro que não, porque Deus deu a Sua palavra; e não
importa o que os homens façam ou não façam, Ele cumprirá a Sua palavra (cf. 2
Tm 2.13). Sempre seja Deus verdadeiro, e todo homem mentiroso, como está
escrito:
Para que sejas justificado em tuas palavras e venças quando
fores julgado. “A infidelidade dos homens simplesmente coloca a verdade de Deus
em destaque: a Sua justiça será sempre vindicada contra a injustiça deles”.
Aqui Paulo cita Salmos 51.4, concordando, a cada palavra, com a Septuaginta,
Veremos o significado desta citação ao considerarmos a pergunta seguinte.
Terceira pergunta. E, se a nossa injustiça for causa da
justiça de Deus, que diremos? Porventura, será Deus injusto, trazendo ira sobre
nós? (Falo como homem) (5). Isto equivale a dizer: “Se a minha infidelidade
coloca em destaque a fidelidade de Deus; se a minha injustiça estabelece a Sua
justiça, por que Ele encontrará falha em mim? Ele verdadeiramente é o vitorioso
com o meu pecado; por que Ele exigiria uma retribuição por ele?”34 Aqui, a
importância da citação de Paulo (Sl 51.4) fica aparente. Davi disse: “Contra
ti, contra ti somente pequei, e fiz o que a teus olhos é mal, para que sejas
justificado quando falares e puro quando julgares”. A idéia parece ser a de
que, como o pecado (até mesmo contra os companheiros, como foi o caso de Davi)
é, acima de tudo e em última análise, um pecado contra Deus, conseqüentemente
Deus, no seu julgamento dos homens pelo pecado, é sempre justo.
Então é esta a resposta de Paulo. Como o pecado é, acima de
tudo e em última análise, contra Deus, Ele é justo ao punir todos os pecados
(6). Os versículos seguintes indicam que é este o uso que Paulo faz de Salmos 5
1:4, e que é esta a sua interpretação. Pois ele continua a tratar com as
conclusões falsas que os seus oponentes podiam tirar (e o fizeram) da proposta
de que o pecado justifica a justiça e o julgamento de Deus. “Mas, se pela minha
mentira abundou mais a verdade de Deus para glória sua, por que sou eu ainda
julgado também como pecador? E por que não dizemos (como somos blasfemados, e
como alguns dizem que dizemos): Façamos males, para que venham bens?” (7-8,
NASB). “Se a minha falsidade faz a verdade de Deus brilhar com mais intensidade
pelo contraste, ela acrescenta à Sua glória; por que então Ele insiste em
condenar-me como um pecador?”, raciocina o pecador. “O fim — a glória de Deus —
é bom.” Por que os meios — os meus pecados — são errados? Certamente o fim justifica
os meios?
Esta linha de raciocínio evoca, no apóstolo, a observação do
versículo 8. Ele prossegue: o fato é que é precisamente isto o que alguns dos
meus oponentes dizem que o meu evangelho significa: Façamos males, para que
venham bens. Mas esta acusação não é apenas uma calúnia; ela se autocondena,
porque é uma contradição. A verdade de Deus sempre está em um erro da espessura
de um fio de cabelo, mas o evangelho da justificação “pela fé, sem as obras da
lei” (3,28) nunca poderá significar antinomianismo, como Paulo irá demonstrar
conclusivamente no capítulo 6. Ali, ele demonstrará que o homem justificado
morreu para o pecado.
Neste ponto ele se satisfaz em replicar que tal raciocínio
só pode se originar de uma natureza moral distorcida, que tenta fazer com que a
luz seja equivalente às trevas. Para tal natureza, a condenação desses é justa.
O apóstolo exibiu duas imagens vívidas e inesquecíveis do
reino da ira de Deus — sobre o mundo gentílico (1.18-32) e sobre o povo judeu
(2.1-29). Como apêndice, ele acrescentou uma passagem à segunda imagem, que
pretendia eliminar a objeção que poderia ser erguida pelo crítico judeu — a
objeção de que o seu evangelho separa o antigo povo de Deus, e, portanto, mina
a fidelidade de Deus. Agora, ao julgamento que se segue aos argumentos
precedentes, Paulo acrescenta o selo das Escrituras, “sem o qual ele não
considera nenhuma prova como finalmente válida”.
Viva vencendo com a maravilhosa salvação que nos foi dada, sem ter que pagar nada por isso!!!
Abraços.
Seu irmão menor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário