11 fevereiro 2010

O Que está aconteçendo?

Reflexão — Ricardo Gondim

O que está acontecendo?

Tudo aconteceu num sábado. Pela manhã, o pastor José profetizava na
rádio que os ouvintes podiam trazer os defuntos da cidade e que todos
seriam ressuscitados no culto de vigília. Na mesma noite, o
evangelista Júlio ensinava pela televisão como os crentes devem
contribuir financeiramente. Repito suas palavras quase ipsis
literis: "Dê, mas tenha a atitude de sempre reivindicar. Se você
oferta por amor, sem esperar retorno, saiba que ficará sem
bênçãos, `seu trouxa'".

Os mais antigos, que viveram os primeiros anos do movimento
evangélico, têm urticária quando presenciam esse tipo de absurdo e se
questionam o porquê do aparecimento de líderes e igrejas tão
caricaturais.

Alguns pedem uma nova Reforma. Aliás, reivindicação que já virou
chavão; mas ninguém fala sobre qual Reforma busca. Será que desejam a
luterana, que ressaltou a graça e a primazia da fé? Ou a de Calvino,
que enfatizou a soberania e a providência?

Jamais conseguiremos ressuscitar a Reforma. Ela aconteceu em um tempo
histórico que já se acabou há muito. Aquela modernidade que facilitou
a Reforma se esgotou.
Hoje vivemos esse tempo doido que alguns chamam de pós-modernidade.

É preciso também lembrar que as inquietações religiosas que varreram
a Europa a partir do século 16 se deram com enormes atritos internos.
Calvino contendeu com Zwínglio e com o próprio Lutero. E, enquanto
esses dois fortes segmentos se fortaleciam na Europa ocidental, não
se pode esquecer dos pietistas alemães que corriam por fora do
establishment — deles brotaram os anabatistas, os morávios, os
wesleyanos e, posteriormente, os pentecostais.

Proponho aprendermos algumas coisas, se quisermos entender o que está
acontecendo.

Carecemos aprender a adensar a fé considerando a realidade desta
geração. Isso já é difícil, pois a hermenêutica evangélica continua
presa aos paradigmas modernos do fundamentalismo; sua eclesiologia
repete o modelo rural de igreja; sua escatologia mantém o otimismo do
começo do século 20 — os evangélicos se contentam em "arrancar tições
da fogueira", salvando almas do juízo que virá antes do retorno
glorioso de Jesus. Porém novas perguntas estão sendo feitas e,
infelizmente, poucos se atrevem a respondê-las. Pior, muitos
continuam tentando responder a perguntas que ninguém mais faz.

Carecemos aprender a desencantar o mundo. Grandes segmentos
evangélicos acreditam que a injustiça e a miséria sejam fruto de
algum tipo de controle do diabo sobre nações.

Certa vez, ouvi uma missionária testemunhando sobre uma rodovia com
uma curva muito acentuada, que provocava acidentes fatais. Certo dia
ela teve uma revelação de que um demônio territorial reinava ali. Sem
hesitar, ela convocou uma vigília para "amarrar" aquele anjo da
morte. Meses depois, o departamento de estradas daquele país colocou
um quebra-molas no local, pondo fim aos desastres. Para ela nem havia
necessidade de ensinar cidadania que ajudasse a resolver um problema
de engenharia, bastava impedir as ações do diabo.

Ao ouvir esse relato, percebi como a moça compreendia erradamente o
que Paulo quis transmitir com sua linguagem de guerra em Efésios 6.
Para muitos crentes brasileiros aquele capítulo é um estudo sobre
como brigar com o diabo. Parece, entretanto, que o apóstolo desejava
mostrar como o mundo se demonizou com o pecado e como as ações
humanas podem mudá-lo.

Carecemos aprender a ser menos apologéticos e mais construtores da
história. Recebi muitas críticas por ter escrito, nesta coluna, que
num mundo pós-moderno as pessoas não se preocupam tanto com a verdade
e sim com a credibilidade. Afirmei que a igreja deveria se preocupar
mais com o testemunho do que com o discurso. Continuo acreditando
assim, pois entendo que foi esse o ensino de Jesus: "Assim brilhe a
luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e
glorifiquem ao Pai de vocês, que está nos céus" (Mt 5.16).

Nos Estados Unidos a imagem dos evangélicos está arranhada devido ao
recrudescimento do conservadorismo, que só privilegia moralismos
comportamentais. Na América Latina inteira eles enfrentam descrédito
por terem sincretizado a teologia da prosperidade com a religiosidade
popular. Somente resgatando o testemunho, serão ouvidos.

Carecemos fazer missões sem tentar manipular o sobrenatural. Fico
impressionado com a necessidade dos cristãos brasileiros de provar
que milagres acontecem aos borbotões; que Deus "funciona"; que os
crentes vivem protegidos de acidentes, doenças e desemprego; e que a
doutrina evangélica gera certezas absolutas. Agindo assim, os crentes
se distanciarão ainda mais da vida, querendo transformar suas
comunidades em ilhas de ilusão.

Por tudo isso, considero que, para entender o que está acontecendo, é
preciso começar a ouvir a advertência do Apocalipse: "Lembre-se de
onde caiu! Arrependa-se e pratique as obras que praticava no
princípio. Se não se arrepender, virei a você e tirarei o seu
candelabro do lugar dele" (Ap 2.5).

Soli Deo Gloria.


• Ricardo Gondim é pastor da Assembléia de Deus Betesda no Brasil e
mora em São Paulo. É autor de, entre outros, O Que os Evangélicos
(Não) Falam, da Editora Ultimato.

Nenhum comentário:

Postar um comentário